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"Valor Sentimental": Deixe-me Contar

Stellan Skarsgård e Renate Reinsve em Valor Sentimental | Foto: Divulgação/ Mubi
Stellan Skarsgård e Renate Reinsve em Valor Sentimental | Foto: Divulgação/ Mubi

Deixe-me contar algo a você. Uma boa história que explique. Que explique do mundo e de seu criador, e que explique o que foi desse mundo antes do meu tempo e do seu sobre esta terra. Que narre sobre os sonhos e os delírios, para que pertençam a mais alguém além do delirante, e assim sejam menos ensandecedores. Que conte das vidas dos antepassados que não conhecemos e - de forma muito mais grave - dos que achamos que conhecemos, e cujas gotas de sangue pingaram diretamente em nossas veias. Deixe-me contar algo a você, do meu sangue, das minhas veias, do mundo e da minha história.


Valor Sentimental (2025) começa com uma casa que conta sua história, ou mais especificamente, com uma menina que conta sua história personificando sua casa. Ela escreve em um papel de caderno, sobre os sons, os pesos e os gostos que o lugar, como algo senciente, nutriria por seus moradores e visitantes. A jovem menina imagina como a residência sente a dor das janelas que batem e a leveza quando as brigas do pai e da mãe finalmente silenciam. Ela conta da calma que surge quando esse pai vai embora permanentemente. Já adulta, Nora (Renate Reinsve) pensaria em revisitar esse exercício enquanto atriz, personificando a casa de sua infância e relendo seu texto em um processo de admissão, mas isso envolve assumir-se na linha de frente da própria história, e a mulher não deixa contar-se.


O último e aguardado longa de Joachim Trier, afinal, é uma tese (ou talvez uma cartografia), sobre o ato de contar-se aos outros e suas dificuldades. Nora se torna uma adulta que conta histórias gregas clássicas como atriz de teatro, enquanto seu ausente pai Gustav (Stellan Skarsgard) envelhece colhendo os frutos das histórias que contou enquanto diretor de cinema. No velório da mãe de Nora, uma psicóloga que vivia de colher histórias de seus pacientes, ocorre um reencontro e então um atrito. Gustav tem um novo roteiro para filmar, contando de uma personagem que parece inspirada em sua própria mãe, e deseja se reaproximar da filha para que ela protagonize seu projeto. Nora imediatamente recusa a leitura do roteiro e a possibilidade de reaproximação que exigiria que ela o ouvisse, como intérprete e como filha, sem resistir. 


Entre ausências, rejeições e omissões, Trier narra seu filme alternando a chance de seus personagens deterem a voz que contará da história dessa família e desse momento. Mediante a negação de Nora, surge a figura de Rachel Kemp (Elle Fanning), atriz hollywoodiana que, deslumbrada, adentra com Gustav na casa em que ele deixou suas filhas e na história que ele cultivou, para ouvir e re-contar tudo que Nora se recusou a descobrir. Entre todos esses contadores de história, existe a figura apaziguadora de Agnes (Inga Ibsdotter Lilleaas), irmã mais nova de Nora, filha mais doce de Gustav e dona de uma vida doméstica pacata. Salvo uma bem sucedida experiência com seu pai durante a infância, Agnes não conta histórias como profissão, mas as recupera. Ela é uma professora historiadora, figura que tem sua própria jornada a contar, mas uma que consiste também em descobrir o que se passou aos outros. Afinal, para que algo seja realmente dito, alguém precisa escutar.


Renate Reinsve e Inga Ibsdotter Lilleaas | Foto: Divulgação/ Mubi
Renate Reinsve e Inga Ibsdotter Lilleaas | Foto: Divulgação/ Mubi

Para orientar as dinâmicas de seus personagens interlocutores, Joachim recorre a um outro contador de histórias: Ingmar Bergman. Ele pincela referências ao sueco, mestre de dramas familiares, com os nomes de seus personagens e com os flashbacks que narram a vida da mãe de Gustav. Trier incorpora, no processo de feitura, o invocar de outras histórias e aponta como elas sangraram nas veias de seu filme. Ao comentar sobre esse bergaminismo no Festival de Cannes, contou: “Quando você olha para alguém em uma conversa, você não pode olhá-lo como no cinema. Não é permitido. É brutal, quase inumano, mas Bergman nos ensinou que ao olhar alguém tão perto você pode brincar com a empatia e identificação [...] mas também com o mistério do outro. Que eu nunca consigo alcançar o outro, como ele alcança a si mesmo.”


É na distância do mistério que residem as histórias aguardando serem contadas em Valor Sentimental. Mas o drama real do filme se instaura não pela mera omissão do contar-se, mas pela natureza desse ímpeto humano transcendental. Pode-se contar sobre si, sobre o mundo e sobre o sonho, mas delírio é enxergar esse ato como integralmente comunal. A distância que resguarda aqueles que têm algo a dizer, um ao outro, não será sempre preenchida de forma harmônica. O ato de contar uma história, além de uma maneira de conexão, pode também ser uma forma de embate, e o pedido de permissão para contar-se, um convite à batalha. 


Nora enxerga essa batalha como algo predominante, tal como Gustav, que parece simultaneamente acostumado e exausto. Rachel, ingênua e jovem, parece demorar a entender que certas histórias não são suas para lutar, enquanto Agnes lentamente encontra um jeito de, conhecendo mais histórias sobre sua família do que eles ousam saber, ter algo a contar que encerre seus enfrentamentos. Mas nem a historiadora e nem Trier teriam capacidade de poupar o ato de seu potencial bélico, e nem prometer aos personagens uma comunhão certeira. 


O que o filme alcança para contar de seus personagens, no entanto, é mais satisfatório do que a simples certeza da harmonia. A persistência de Agnes e a ambição de Gustav abrem caminho para que Nora supere a distância que mantém do mundo e permita, finalmente, contar de si, ainda que seja incerto se ela o faz de maneira ampla. Quando Gustav pede para que a filha encene o suicidio de sua mãe no filme, ele sabe que Nora revisita sua própria tentativa mal-sucedida? Será que a filha deseja que ele saiba? Valor não articula a clareza desses gestos, mas apresenta a minúcia de sua execução. Para além da comunhão ou embate entre os interlocutores, o ato de contar contém sempre uma história, às vezes uma boa história que explique. E que, talvez até, se faça sentir, mesmo que não conte diretamente do que alguém tem a dizer. A morte da mãe de Gustav não é a vida de sua filha, mas algo ali ata a jornada do diretor e da atriz, para além do sangue. O contar dessa história talvez não afaste o mistério, mas cubra a distância. 


Valor Sentimental, ao fim, entende o ato de contar em si como material a ser desbravado, incorporando sua própria tessitura enquanto filme como tema a ser explorado. Para além de seus personagens, o exercício de sua história sugere uma intimidade no espaço que nunca, como aponta Trier, pode ser superado. Jamais observa-se o outro como ele a si, mas na distância que permite espaço às histórias, pode-se enxergar a proximidade. E tal qual o olhar final de Gustav e Nora, pode se pedir para ouvir o que o outro tenha a contar. E que deixe-me contar. Contar a você sobre o sonho, a história e o mundo. E conte a mim sobre o seu sonho, a sua história e o mundo, tal qual o meu. Escute-me e deixe-me escutar. E no mistério e na distância, encontre-me e queira contar a mesma história. E deixe-me contar, contigo.


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