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Afaste o Cânone, Abrace seus Amigos e Faça um Filme

Morte e Vida Madalena | Foto: Divulgação/ Embaúba Filmes
Morte e Vida Madalena | Foto: Divulgação/ Embaúba Filmes

Existem inúmeros filmes que podem ser descritos como uma “carta de amor ao cinema”. Isso pode ser observado como uma tendência histórica. Em períodos, países e cenários plurais, isso se repete. Uma amostra da paixão absoluta do cinéfilo pelo cinema. Não basta assistir aos filmes, é necessário possuí-los, capturar suas imagens, gestos e signos. Esse tipo de manifestação grita “amor pelo cinema”, definição de cinefilia para os teóricos Jacques Aumont e Michel Marie. Entretanto, trata-se de um amor com peculiaridades, que flerta com o fetiche e com a obsessão. Dessa forma, é natural que os cineastas ao redor do mundo queiram manter consigo esses fragmentos fílmicos que lhes formaram, um certo anseio pela nostalgia, mas também uma forma de retribuir o que o cinema lhes proporcionou. Gestos de amor recíprocos em formato de filme. Fellini fez seu Oito e Meio (1963), Godard suas Histoire(s) du cinéma (1989), Kleber Mendonça Filho seu Retratos Fantasmas (2023). São incontáveis gestos e cada cineasta faz à sua maneira, com a sua linguagem, compartilhando sua experiência passional com as imagens. 


Seria um tanto óbvio e ordinário colocar Morte e Vida Madalena (2025) nesse gênero. Ele é isso e muito mais. Para além da repetida homenagem ao cinema como arte, há um interesse maior do que o mero fetiche cinéfilo. O filme escreve sua carta de amor por meio de outra perspectiva, em uma grande exaltação ao cinema independente e à coletividade. O amor genuíno do filme — e do diretor ao cinema — está nos perrengues, nos encontros, nas parcerias, nos afetos e nos conflitos.


Ao apontar a câmera para sua própria equipe, Guto Parente a coloca no centro dessa homenagem, realizando um ato político. A tão repetida “carta de amor ao cinema” não exalta mais os filmes clássicos de Hollywood ou os diretores consagrados. O cânone da história do cinema é deixado de lado, os exaltados agora são os inúmeros artistas e trabalhadores do audiovisual, verdadeiros responsáveis pela produção dos filmes. Com destaque aos amigos e colegas que participaram — Breno, Nicole, Lanna, Artur, Ingra, Bibiu, entre muitos outros — saibam que foi um prazer inenarrável vê-los em tela. Esteticamente, essa também é uma maneira do diretor falar da sua própria trajetória artística, sobre como aprendeu a fazer cinema, especialmente durante os anos que integrou o coletivo Alumbramento, em Fortaleza. Com uma forma de realização coletiva, pautada nos afetos e nas amizades entre os membros da equipe.


Morte de Vida Madalena | Foto: Divulgação/ Embaúba Filmes
Morte de Vida Madalena | Foto: Divulgação/ Embaúba Filmes

Também é impossível falar de todo esse companheirismo presente no filme sem abordar a relação entre Guto Parente e a produtora Ticiana Augusto Lima. Mesmo essa homenagem sendo para o cinema independente — em uma visão geral — e para todos aqueles amigos, acaba sendo personificada na personagem título. É nítido o paralelo entre Ticiana e a protagonista Madalena, interpretada por Noá Bonoba. A atriz traz complexidade e força para essa personagem que, mesmo à beira de um burnout, carrega um mundo de responsabilidades em suas costas (ou em seu ventre), sabendo que é a única que pode resolver aquilo. Ela gesta uma criança, mas também o próprio filme que produz. Há uma metalinguagem afetiva que toma conta de cada camada. A linha entre ficção e realidade, periodicamente tensionada ao longo do filme, vai se tornando cada vez mais tênue, culminando no nascimento catártico do bebê de Madalena, Fellini, representado poeticamente em tela pelo bebê de Ticiana. O nascimento de uma criança e de um filme, em tela e fora de tela. Uma exaltação a trajetória de vida e de cinema que trilharam juntos.


Essa homenagem ao cinema independente evidencia em Guto Parente um momento de autorreferência, já iniciado em Estranho Caminho (2023). Em um encontro no ano passado lhe fiz uma pergunta a respeito de seu filme anterior, abordar o tema da realização cinematográfica e colocar um cineasta como protagonista. A primeira coisa que me disse foi “acho que estou ficando velho”. É natural esse comparativo, se o filme anterior funcionava como uma ode ao cinema experimental, em que Guto é um grande expoente (Flash Happy Society, (2009) A Misteriosa Morte de Pérola (2014), entre outros), em Morte e Vida Madalena ele expande essa homenagem, agora com ênfase no cinema de baixo orçamento em uma perspectiva mais ampla.


Se Estranho Caminho homenageou o cinema experimental e as fabulações de Guto e seus amigos nesse segmento, seu novo filme busca englobar tantos outros gêneros. Além do experimental, que continua bastante presente, o filme também exalta o terror, o sci-fi e principalmente a comédia. É interessante a maneira como a obra abraça essa comicidade das situações diárias do set de filmagem como uma forma de reforçar sua mensagem. Lembrei imediatamente do Cinema Marginal, que incorporou o humor à forma de fazer cinema como uma maneira de protestar. O deboche, a sátira, o tom de anarquia, sempre se fizeram presentes. O movimento se apropriou de elementos cômicos das chanchadas em algumas de suas obras para forjar sua própria linguagem, transformando-a em uma arma política. Aqui acontece algo parecido, mas feito de maneira para que Guto possa rir (e, ao mesmo tempo, denunciar) a sua própria situação enquanto realizador independente. O mix de gêneros também é um dos aspectos mais interessantes do filme. Funciona como uma reverência ao cinema underground, uma estética que interessa bastante o cineasta, basta assistir O Clube dos Canibais (2018), mas acima de tudo funciona como impulso de criatividade e uma forma de invenção. O filme se apropria de códigos e artifícios desse cinema B justamente para falar sobre o cinema independente brasileiro e sua precariedade. 


O cinema nacional vive de se reinventar, fazendo justamente dessa precariedade seu propulsor criativo. Isso vai muito além das ideologias, estéticas ou grupos nomeados. É necessário sempre criatividade (invenção) para superar os momentos de crise. Para o teórico Ismail Xavier, em “Alegorias do Subdesenvolvimento”, essa precariedade não é somente uma limitação econômica, mas ligada à própria condição material e estética que define a realidade brasileira. Segundo ele, essa realidade fragmentada e caótica impede um cinema de “formas perfeitas”, exigindo que o artista crie a partir dos “restos” e “fragmentos”, ou seja, exige a invenção para existir. 


Nesse cenário, Morte e Vida Madalena ri da sua própria precariedade, tirando sarro das gambiarras e burocracias que os produtores e realizadores enfrentam no cinema brasileiro. Seja a falta de pagamento pelo governo, a ameaça de greve, o sumiço do diretor, ou até mesmo os devaneios artísticos do elenco. No filme, tais precariedades são evidenciadas e sentidas, sempre com bom humor, para poderem ser compreendidas e então superadas. O filme de Guto Parente nos provoca a pensar sobre o que realmente sustenta o cinema independente. Não as glórias individuais ou os cânones, mas a potência dos encontros e a força do coletivo.

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