Não precisa ser um agente secreto para ouvir o passado
- Montez

- há 2 horas
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“A técnica da história oral colhe informações que não ficaram na história”, diz Joselice Jucá, mãe de Kleber Mendonça Filho, em vídeo entregue ao cineasta enquanto ele fazia Retratos Fantasmas (2023). Essa frase, presente ainda no início do longa documental, parece ecoar na própria feitura cinematográfica do diretor. Não, melhor. Talvez seja mais assertivo dizer que ela funciona não somente como uma metodologia de pesquisa, mas como uma chave de leitura de seus interesses estéticos. A escuta do que ficou à margem atravessa o cinema de Kleber desde suas primeiras realizações (o que seriam A Menina do Algodão (2002) ou Vinil Verde (2004) se não lendas que desconhecem espaço-tempo?). Em Retratos Fantasmas, contudo, essa operação ganha um outro sentido: o passado é a temática e a materialidade. As imagens arquivísticas, guiadas por essa sensibilidade herdada da mãe-historiadora, transformam-se em instrumento de escavação de arquivos e ruínas urbanas, claro, mas principalmente de memórias e presenças.
Há quem argumente que seus filmes, sobretudo este e Aquarius (2016), configuram exercícios nostálgicos de caráter reformista. Em outros termos, como se o desejo do cineasta fosse o de restituir o passado, erigindo-o quase como um totem simbólico sob o qual a sociedade deveria reorganizar-se. Indo mais longe, poder-se-ia dizer que há o anseio de transformar Recife (e, por extensão, Pernambuco) nessa imagem quase nacionalista — o que, de fato, inscreve-se em uma pernambucanicidade que ultrapassa o plano das elucubrações abstratas e encontra materialidade na própria história do estado, bem como na maneira pela qual sua população se relaciona com seus símbolos. Essa leitura, contudo, além de míope, reduz a ideia de nostalgia ao seu aspecto mais empobrecido, o de mero retorno ao passado, impedindo que ela se revele em sua dimensão mais arqueológica: aquela interessada, sim, nas ruínas, mas sobretudo em como elas são organizadas (e reorganizadas) para pensar o presente e projetar sentidos para o futuro.
É justamente esse olhar de inspiração claramente benjaminiana que me interessa como metodologia de análise, do mesmo modo que a história oral o é para Joselice Jucá, para refletir sobre o mais recente longa-metragem do cineasta, O Agente Secreto. É preciso destacar que essas duas frentes de pesquisa convergem em um mesmo interesse: o de “escovar a história a contrapelo”, como propõe Walter Benjamin em suas Teses sobre o conceito de história. Em termos mais precisos, tanto a arqueologia quanto a história oral constituem instrumentos para narrar a partir do ponto de vista dos vencidos e não dos vencedores. Trata-se, portanto, de um gesto de crítica às formas hegemônicas de narrativa histórica, um esforço de revelação das vozes silenciadas.
É quase inevitável, portanto, pensar em Marcelo (Wagner Moura) como uma figura duplamente agenciadora em O Agente Secreto: a) no plano narrativo, porque sua presença organiza e articula os demais personagens em torno de seu retorno ao Recife; e b) no plano histórico, porque aqueles que gravitam ao seu redor representam justamente as vozes que, se não foram silenciadas, ao menos se desejava que o fossem. Kleber Mendonça Filho, então, opera como um cineasta-arqueólogo, para quem a câmera funciona como uma pá que desenterra vozes e nomes, verdadeiros ou inventados, com o intuito de compor uma memorabília afetiva e política. Essa coleção não apenas serve ao tempo histórico no qual a narrativa se inscreve (os chamados “tempos de pirraça”, em 1977), mas também o reinscreve no presente, em um gesto relacional entre memória e atualidade. Se sua obra é permeada pelos chamados “klebismos”, é justamente porque Kleber busca, em seu acervo arqueológico da realidade, fragmentos que, ao serem remontados, compõem sua narrativa.

O Agente Secreto seria, então, uma fabulação crítica? Ou, nos termos de Saidiya Hartman, uma tentativa de unir os blocos de construção narrativa fabular às lacunas do arquivo, recompondo o que a história oficial deixou de fora? Mas que tipo de fabulação é essa: uma que inventa para preencher, ou uma que escava para expor o vazio? E se a ficção, nesse caso, não viesse para corrigir a ausência, mas para dar forma ao silêncio, tornar sensível aquilo que o arquivo não necessariamente contém? Nesse sentido, o gesto de Kleber seria menos o de um restaurador do passado e mais o de um arqueólogo do sensível, que se aproxima de Hartman ao usar a imaginação como método de reparação poética. Talvez isso fique evidente na cena que, sem dúvidas, representa um dos momentos mais altos do cineasta como fabulador e criador de imagens de cinema (para retomar seus próprios termos em Retratos Fantasmas): a da perna cabeluda.
Durante a reunião dos moradores do Residencial Ofir, é lida a matéria de jornal que relata o ataque dessa perna no Parque 13 de Maio. Mais que simplesmente ler, Kleber ilustra de maneira imaginativa como o ataque teria ocorrido. A partir desse ato de contar, o filme flerta com a fabulação crítica ou com uma ética da imaginação: ao reconstruir o incidente com liberdade, o cineasta expõe a tensão entre memória, fato e invenção, mostrando que a verdade de uma história não reside apenas no que foi registrado, mas também naquilo que precisa ser sentido, imaginado, encenado. A cena, que se inicia dessa forma, se estende por vários minutos, permitindo que cada um dos moradores — desde Marcelo, cuja identidade é revelada, até aqueles que ali vivem — fale sobre si, seus medos e esperanças. Moura, nesse momento, fala pouco; sua presença funciona como um dispositivo de escuta, que permite que os outros habitantes surjam da sombra para se tornarem figuras que entrelaçam temporalidades.
Toda a cena parece compreender que a narrativa histórica não se estrutura como uma sequência linear, mas sim como uma imagem dialética, ou, nas palavras de Walter Benjamin em Passagens (2009), “[...] não é uma progressão, e sim uma imagem, que salta”. É, também, por meio de uma decisão narrativa e estética que a imagem dialética se revela plenamente: a intercalação temporal com o presente. Toda a narrativa que circunda a personagem de Laura Lufési, seu interesse por Marcelo e, por consequência, por todas as vozes que o orbitam, permite que o passado salte no presente, que o calor e o carnaval recifense ressoem na imaginação e na escuta de uma jovem cuja vivência cotidiana parece marcada por uma esterilidade, como se seus batimentos e percepções estivessem cada vez mais rarefeitos.
É através dela, com os arquivos e suas fabulações, que a história de Marcelo, o professor universitário que foi ao reencontro de seu filho em Recife, se coloca como história. Sim, talvez ela conheça mais sobre aquele homem que seu próprio filho — e, talvez, ela o conheça melhor que a si mesma — mas através da oralidade e do seu desejo por uma arqueologia da história, narrativas permanecerão sendo contadas. As ruínas podem ter deixado de existir, ou melhor, podem ter se tornado outro prédio, mas o que foi construído em cima dele nunca será esquecido enquanto houver aqueles que desejam ouvir e contar histórias. No final, cinema é sobre isso. E não precisa ser nenhum agente secreto para saber.




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