"Kontinental 25": Escrevendo sobre a Romênia ou Sintomas de Traumas e Conflitos
- Wandryu Figuerêdo

- há 3 dias
- 4 min de leitura

Às 15h21, em um Uber Moto que custou R$ 12,91, minha mente fervilhava com possíveis argumentos para enriquecer meu texto sobre Radu Jude. O importante não é escrever bonito, é afirmar minha tese. Raramente fico ansioso para as sessões, mas, neste caso, quase peguei o celular para filmar um romeno ali mesmo: eu, o Uber Moto e a maior avenida em linha reta. A cobertura de festivais é sempre complexa, pois as palavras que vocês leem hoje precisam ser escritas com certa urgência. Não posso desfrutar da minha semana, que se conecta tanto com a da protagonista, Orsolya, para depois escrever. É preciso escrever agora, aproveitar o engajamento, antes que a paciência dos leitores se esgote e, em vez da minha crítica, eles leiam sobre Virginia e Vinicius Junior, porém, nesse caso, também estou acompanhando de perto.
Ao sair da sessão no Cinema São Luiz, corri para a Rua do Hospício, onde se vende um ótimo cachorro-quente a um preço acessível, perfeito para um jovem de Jaboatão dos Guararapes, cidade da Região Metropolitana do Recife. Enquanto esperava meu delicioso e gorduroso cachorro-quente, conversei com uma mulher que falava sobre a situação dos moradores de rua no centro. Ela começou a expressar pena e desaprovação. Contudo, logo em seguida, começou a rir, contando que, em um dia comum, encontrou 23 kg de crack e, em vez de se perder como um morador de rua, fumou tudo ao longo das semanas e continuou "de boas". Ao lado, o filho dela, com sua filha pequena, ria; eu também ri. Meu texto nasceu aqui, estávamos em um cenário cinematográfico romeno.
Kontinental’25 é sobre Orsolya (Eszter Tompa), uma oficial de justiça encarregada de despejar um morador de rua de um porão que ele considerava seu lar. Após oferecer um prazo para a retirada de seus pertences, o morador de rua comete suicídio, utilizando um fio no pescoço e uma cadeira. Conforme o relato da própria Orsolya, a equipe de emergência tentou reanimá-lo por uma hora, mas ele já estava sem vida, com o corpo molhado e o rosto pálido.
Em "Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental" (2021), filme do diretor, que se passa entre a pandemia e o ‘’pós-pandemia’’, a protagonista demonstrava incerteza em seus passos, com suas ações a levando para outras direções, outras avenidas, talvez para evitar uma resolução, - a fuga parece mais prazerosa. Semelhante à sua protagonista anterior, por um período prolongado, acompanhamos Ion (Gabriel Spahiu), o morador de rua, que caminha no parque entre brinquedos de dinossauros. Assim como a extinção dos dinossauros há milhares de anos, o espaço geográfico e os corpos que o ocupam parecem desejar sua invisibilidade ou morte. Ion caminha em busca de dinheiro e emprego, e enfrenta um conflito com um cachorro eletrônico que o impede de pegar água gratuitamente em sua garrafa. Se os corpos com mais calor desejam sua eliminação, a tecnologia parece reforçar esse raciocínio.
Por não procurar muitas informações, além da direção de Radu Jude e as premiações em torno da obra, não sabia que era uma obra inspirada em Europa 51 (1952), do Roberto Rossellini. Quem sabe, se soubesse, teria menos envolvimento com Ion, onde ele riu, se divertiu e ironizou as histórias daquelas ruas na Romênia. No caso de ambos os filmes, há o suicídio de uma figura inocente, que absorve todas as constelações daquele mundo e, em vez de ascensão, transpira encerramento. Como a protagonista, a narrativa me pegou desprevenido.
Mesmo com mais de 10 anos de experiência como oficial de justiça, Orsolya sente a morte de Ion, com quem havia estabelecido uma ligação ao enviar ofícios à prefeitura solicitando mais tempo para o despejo. O trauma, como apontam teóricos como Žižek e Freud, não se dissolve, mas se manifesta de diversas formas, persistindo além da tentativa de apagamento histórico. Enquanto seu marido e colegas de trabalho parecem encarar o ato de Ion como um evento cotidiano a ser superado, a personagem não consegue fechar essa ferida. A sociedade, frequentemente ilustrada pela efemeridade das redes sociais, onde em 24h a morte de um famoso é rapidamente substituída por uma celebração no mesmo perfil, impõe uma superação do luto que é, para Orsolya, uma impossibilidade, mantendo a fresta de sua dor aberta.
Ao invés de uma protagonista que espelha o título de referência italiana, Radu Jude nos apresenta uma personagem complexa e cheia de contradições. Orsolya, apesar de sua aparente bondade e do colar cristão, demonstra uma moralidade ambivalente em seus diálogos. Um momento ilustrativo é quando ela opta por doar 2 euros para a conta de telefone, afirmando que isso a ajuda a lembrar das mais de vinte ONGs que apoiam ao redor do mundo. Na sala de cinema, percebi que a abordagem de Radu Jude, em certos pontos, se aproximava da crítica de Jomard Muniz de Britto em Discurso Classe Média (1977), filme que vi na sessão anterior, onde seus personagens encaravam a frontalidade da câmera e pronunciaram, “venda a classe média”, e me questionei se a plateia de classe média se sentiria provocada- infelizmente, a ausência de luz na sala atrapalhou minha sincera observação.
Para lidar com a perda, o cinema e a história também articulam aspectos irônicos como um sintoma de algo mais profundo, uma forma de confrontar o real traumático e as contradições da existência. As conversas dos personagens, Orsolya e seu antigo estudante, pelas ruas me remeteram aos meus próprios dates em Cajueiro Seco, onde cada rua que eu transitava revelava um assalto, uma tentativa de homicídio ou uma briga. É notável, principalmente nas discussões, a impossibilidade de uma resolução fácil diante do atual panorama histórico, que envolve conflitos na Ucrânia e em Gaza, que envolve Romênia e Hungria, mas que também envolve o próprio centro do Recife.
Nos planos finais, a câmera percorre as ruas da Romênia. Não há uma explicação explícita para o significado de cada uma, mas a ausência de figuras humanas, substituídas por paisagens ou supostas paisagens, sugere que o luto se estendeu para além da personagem. O valor semântico se conecta não apenas a Orsolya, mas aos cenários históricos e às ruas por onde o filme transitou. Honestamente, espero que ela encontre um refúgio, talvez em uma máscara que usará pelos próximos dias, semanas ou anos, pois nas últimas imagens, mesmo em sua ausência, o trauma dela ainda se fez presente.




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