Um drama histórico para um povo com história
- Nathalie Almeida

- há 11 horas
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A Árvore vai se erguer.
Vão se erguer tronco e galhos
diante do sol.
Vão crescer e verdejar
diante do sol.
As folhas vão brotar como risos
e os pássaros vão voltar
vão voltar
vão voltar
(Fadwa Tuqan – O Dilúvio e a Árvore)
Em seu mais novo filme, Palestina 36, a realizadora Annemarie Jacir continua a explorar os temas da identidade e história palestinas, mas agora numa escala exponencialmente maior. Se em O Sal desse Mar (2008) e Wajib (2017) as sutilezas da vida cotidiana explicitavam o enlace entre o íntimo e o político, o longa de 2025 se reveste das características dos grandes dramas históricos para recontar parte importante da trajetória do povo palestino. Mesmo operando dentro do domínio estético-narrativo clássico dos dramas de época, Jacir concebe sua obra de maneira dialógica, iluminando o que está por trás da resistência palestina, ao passo que se comunica diretamente com o presente.
Como apontado no título, estamos em 1936 e acompanhamos a revolta palestina contra o mandato britânico, após séculos de dominação otomana. Sob as sombras da Declaração Balfour em 1917, a narrativa constrói representações da sociedade local na iminência da Nakba, a grande tragédia palestina em 1948. Dos intelectuais nas cidades aos camponeses, revolucionários e colonos europeus, a apresentação dos personagens no drama por vezes resvala no didatismo próprio a este tipo de produção, porém sem nunca se entregar completamente aos estereótipos hollywoodianos. Ao optar pela estrutura de ensemble, o filme destaca o caráter coletivo da resistência palestina em meio ao turbilhão de emoções que os acomete - expulsões violentas e desapropriações de terra. Contudo, ao contar com um elenco estrelado – a exemplo de Hiam Abbass, Saleh Bakri e Jeremy Irons -, um expediente pouco usual no cinema palestino, fica claro que Jacir também está facilitando a exposição dessa rebelião esquecida ao público do Ocidente.
Na luta para conciliar preocupações concorrentes de crítica disruptiva, de um lado, e de comercialização e tradição, do outro, o longa ainda encontra modos de transpassar esquematismos redutivos e até mesmo os limites do regime de coprodução internacional. Quando o casal de jornalistas Khuloud (Yasmine Al Massri) e Amir (Dhafer L’Abidini) se vê em lados opostos, Jacir dispensa a construção forçosa de uma versão árabe de Carville/Matalin. A realidade é devastadora e não há acordo possível que não envolva a plena autodeterminação do povo palestino. Outra quebra de tropo narrativo aparece no desfecho do funcionário da coroa britânica, Thomas (Billy Howle). Inicialmente apresentado como o típico aliado, ele desiste da causa palestina dada a “complexidade” da situação. Aqui, o drama faz menção direta à ignorância ocidental deliberada. O longa também aponta a responsabilidade dos britânicos na manutenção do ciclo de violência que afeta os árabes há séculos.
Nessa obra, que é também uma denúncia, a diretora dialoga com a historiografia através do recurso das imagens de arquivo, e nos remete imediatamente à Palestina contemporânea, ao mostrar vilas e plantações destruídas, além de pontuar a disparidade nas relações de poder entre nativos e colonos. O longa não apenas insere o cinema palestino no circuito popular como, enquanto filme de época, apresenta outras perspectivas passíveis de dramatização, rompendo com os mitos perpetrados pelo ocidente. Ao encadear os fatos numa narrativa, Jacir nos lembra que os palestinos existem naquele lugar desde muito antes de 1936 e que, portanto, aquela nunca fora “uma terra sem povo”. Dramas históricos não constroem a História, mas eles podem modular significativamente a percepção pública ao lançarem luz sobre outros eventos e figuras de forma vívida e acessível.
O projeto de Jacir foi idealizado muito antes dos acontecimentos de outubro de 2023. O longa, inclusive, teve suas filmagens em locação interrompidas pela escalada da guerra. Então, é uma coincidência aterradora que o filme, que se concentra em um momento crucial da história palestina, chegue durante outra época penosamente formativa para o país. Palestina 36 não se limita a registrar um conflito localizado, ressoando no presente como elegia e advertência: um retrato da resistência que persiste mesmo o horizonte parecendo ruir, e da esperança que, embora às vezes pese e doa, continua sendo o único caminho possível.
É nesse sentido que, mesmo trabalhando em um regime formal convencional; em meio a perseguições e explosões, Jacir se permite criar cenas de grande força poética - como a última sequência do longa, que acompanha a libertação de um prisioneiro e um eventual protesto unificado. É um final aberto, cuja única certeza parece ser o comprometimento com a causa palestina. Uma cena ambientada em 36, mas que também poderia ser vista em 17, 48, 67, 87, 2000, 2023 e 2025. Isabella Hammad, na palestra “Recognizing the Stranger”, nos lembra que para Edward Said, o “palestinianismo é uma condição crítica de exílio, exílio como agonia e também como uma posição ética”. Um posicionamento obviamente carregado de incertezas externas, mas sempre resoluto. Em Palestina 36, Annemarie Jacir recusa o fechamento da narrativa ocidental hegemônica e reforça a insubmissão e a persistência da resistência Palestina.




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