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Viver um Gênero: Entrevista com Douglas Soares

Gero Camilo e Ruan Aguiar em Papagaios | Foto: Divulgação/ Olhar Filmes
Gero Camilo e Ruan Aguiar em Papagaios | Foto: Divulgação/ Olhar Filmes

O cinema brasileiro frequentemente se destaca pela capacidade de dialogar com a realidade social e cultural do país, mesmo quando se aventura pela ficção. É o caso de Papagaios, o primeiro longa-metragem de ficção de Douglas Soares, que conta com Gero Camilo e Ruan Aguiar nos papeis principais. O filme se apresenta como um ponto de intersecção, entre o olhar documental do cineasta aliado ao cinema de gênero. Pensar sobre a influência da trajetória documental do cineasta na construção de um “suspense-brasileiro”, que resgata a figura do "papagaio de pirata" e reflete sobre o entusiasmo e o engajamento crescentes em torno da produção cinematográfica nacional, em um cenário onde a validação dos prêmios se mistura ao fervor das redes sociais são alguns dos pontos traçados nessa entrevista com Douglas Soares.


Primeiro, gostaríamos de falar sobre Papagaios. Você vem de uma trajetória ligada ao documentário, tendo trabalhado com Allan Ribeiro, que também assina a montagem do seu filme. Como essa experiência no campo documental influenciou a realização de Papagaios, seja na construção narrativa ou na encenação?


Eu rodei meu primeiro curta em 2006. Foi o documentário “Minha Tia, Meu Primo”, todo gravado num único dia, acompanhando a minha tia-avó horas antes dela fazer uma viagem. Essa foi minha primeira experiência como diretor, cameraman, montador… tudo! Era um daqueles filmes de “um homem só”. Inclusive, foi também a primeira vez que eu entrei em contato com a tal “performance” no documentário. Essa possibilidade real que um personagem tem de fabular sua história e a forma como quer ser visto, registrado. Hoje, pra mim, me parece muito claro o quanto os meus documentários seguintes foram aos poucos se “contaminando” dessa fabulação, da proposta de ficcionalização do real, até chegar nesse meu primeiro longa de ficção. E que também é resultado da minha participação nos filmes híbridos do Allan Ribeiro, parceiro e sócio em muitas obras. 


Eu acredito que as ferramentas do documentário tenham elaborado em mim uma atenção plena para o acaso e pro inesperado. E, de certa forma, a preparação para “Papagaios” seguiu essa estratégia. Existia um roteiro de ficção, mas eu estava ali diante de dois atores que me respondiam com coisas novas, que eu podia agregar ao filme, ou descartar. E eu acho que o documentário é um pouco assim. Na sala de ensaio, por exemplo, eu estava o tempo todo com o roteiro aberto, percebendo a forma como eles falavam, as músicas que eram propostas nos exercícios, o caminhar na sala, uma piada que fazia sentido… ali, muitas vezes, eu me sentia numa Ilha de Edição, que é o lugar onde eu mais me sinto diretor quando estou fazendo documentários. Então, eu acho que o resultado de “Papagaios”, enquanto ficção, é consequência desse método de trabalho que estou familiarizado. 


Talvez todo filme de ficção seja assim, mas o que eu quero dizer é que eu estava consciente disso e agia com esse intuito. Era muito interessante ver a equipe de figurino entendendo que estava trabalhando com um documentarista e propondo primeiro um realismo, para só depois, em cima desse "real", trazer o onírico que algumas cenas pediam. O mesmo acontecia na arte do filme, onde cada gaveta da casa do Tunico estava repleta de objetos reais que ele poderia escolher usar, ou não. A Elsa Romero, diretora de arte, dizia que eu — enquanto documentarista — poderia abrir um armário qualquer, se encantar com algo, e decidir usar. Então, as coisas tinham que estar ali. Óbvio que isso acaba sendo dito como uma anedota, uma piada interna, mas não dá pra negar que essa minha experiência anterior influenciou quase tudo em “Papagaios”. Inclusive, o convite para o cantor Leo Jaime, para Claudete Troiano, Babi Xavier e o jornalista Eduardo Grillo vem muito disso. Era importante que eu criasse uma atmosfera de “realidade”, esse lugar que eu considero familiar, com figuras que existem fora do filme, para que esses dois personagens ficcionais (Tunico e Beto) parecessem mais críveis diante do exagero e do tom satírico de alguns momentos.


Ainda nesse sentido documental, até mesmo na estética da imagem, nos parece inevitável pensar, de alguma forma, como teu filme acaba sendo uma espécie de arquivo da cultura de massa brasileira, resgatando a memória de um tempo onde a TV tinha um poder hegemônico quase absoluto. Como você enxerga essa transferência, se é que podemos chamar assim, dessa hegemonia para as redes sociais? 


Não sei se eu tenho dados concretos para entender o impacto e a grandiosidade dessa transferência de hegemonia da TV pras redes sociais. Acho que ninguém tem, até porque são informações sigilosas, que eles fazem questão de omitir; justamente pra criar essa atmosfera de que as coisas continuam relevantes na TV e na Internet, como se uma coisa alimentasse a outra. Com “Papagaios”, eu quis trazer uma época mais nebulosa desse processo, que é justamente o da transição. Um olhar atento percebe que o filme nunca dá uma data específica sobre o período em que ele se passa. O que temos é uma mistura de tecnologias: TV de tubo com as primeiras telas planas, celular tijolinho com celular flip, digital e analógico etc. Essa tal “transição” que pessoas com mais de 35 anos experienciaram. 


Eu buscava com isso colocar os personagens nesse lugar de inquietação. Aquela sensação de que algo está mudando, mas não se sabe ainda como ou o quê. Tunico (Gero Camilo) talvez seja o mais sensível a isso. É ele que percebe primeiro que as coisas estão difíceis na TV. E então chega o novo: o Beto (Ruan Aguiar) e sua pulsão imediatista, característica das redes. No fim, esses personagens se “retroalimentam”, como eu acredito que seja a TV e as Redes, especificamente, no Brasil. A única coisa concreta pra mim é ver que "pessoas físicas" se tornam “pessoas jurídicas”, marcas, nas redes sociais, ao ponto de não ser mais lucrativo almejar estar na TV. Porém, “Papagaios” termina antes disso acontecer. E, de vez em quando, eu gosto de pensar onde o Beto estaria se o filme tivesse uma continuação improvável. Onde e como ele estaria influenciando?


Gero Camilo em Papagaios | Foto: Divulgação/ Olhar Filmes
Gero Camilo em Papagaios | Foto: Divulgação/ Olhar Filmes

E, provocando um pouco mais: agora que o termo "papagaio de pirata" está sendo substituído pelo "influencer" ou "criador de conteúdo", qual o valor antropológico de revisitar e registrar no cinema essa figura que, embora démodé, é um sintoma persistente da nossa cultura da visibilidade?


Revisitar esses personagens talvez tenha vindo da vontade de reconstruir um Brasil onde as coisas eram um pouco menos massificadas. E eu sei que é estranho falar isso, porque a televisão sempre foi extremamente massificante. Principalmente a TV dos anos 80 e 90, quando essa cultura dos “papagaios de pirata” surgiu com força no Rio de Janeiro, não à toa a sede da maior emissora do país. Mas é que eu acredito que a internet potencializou essa massificação num lugar alarmante. Antigamente, cada “papagaio”, dentro do seu grupo de atividade, buscava sempre uma identidade própria, uma individualidade na forma de se vestir, de se portar diante da câmera, de existir no mundo. 


Aquela máxima: “se eu apareço na TV, existo”. São os 15 segundos de fama que podiam se transformar em 15 minutos, 15 anos, dependendo do talento… todos buscando isso de alguma forma! Olhando pra trás, hoje isso parece até meio ingênuo. E um símbolo dessa “ingenuidade” é justamente a forma como os “papagaios de pirata” se colocavam na tela: atrás do repórter. Há toda uma ética nesses “profissionais”, que parece ter se perdido nas redes sociais. Simbolicamente, o filme propõe uma ruptura dessa ética quando “estar atrás” não é mais suficiente. E é aí que a cultura da visibilidade de hoje (a de “influenciar pessoas” como profissão) se instaura, ganha espaço, novo nome e outro veículo. 


Alguns cineastas apontam que a opção por se utilizar do cinema de gênero é uma forma mais assertiva de atingir um público maior. Como você enxerga essa relação? Como citado no debate do XVI Janela, suas referências também passam por isso…


O cinema de gênero, de forma geral, tem alguns elementos narrativos, de montagem, de ritmo e som que conhecemos como “envolventes”. São poderosos e devem ser usados. Talvez seja por isso que muitos cineastas e produtores invistam em histórias assim. As referências de “Papagaios” são muito distintas entre si. Tem clássicos como “A Malvada” (1950), “O Rei da Comédia” (1982), “Taxi Driver” (1976)… mas também obras mais recentes, como “O Abutre” (2014), o brasileiro “O Lobo Atrás da Porta” (2013) e até o chileno “Tony Manero” (2008), de Pablo Larraín. São filmes que dialogam com o público, inclusive nas suas diferenças. E eu sempre desejei essa comunicação com o espectador no meu primeiro longa-metragem. 

Pessoalmente, eu não acho que as ferramentas do suspense são fáceis de se trabalhar. É necessário esconder muita coisa, omitir outras, criar ambiguidades... e a história pode se perder nesse caminho. Para mim, foi tudo muito desafiador. Até porque o meu desejo primordial também era o de experimentar uma nova linguagem, que me tirasse de uma zona de conforto que eu nunca gostei de estar. Por consumir filmes de terror, thrillers, suspenses, eu queria me provocar a pensar num cinema de gênero tipicamente brasileiro. Isso existe? Se existe, no que difere dos outros? 


Eu adoro apresentar “Papagaios” como um suspense-brasileiro. Não porque ele nasceu aqui, no Brasil, mas porque ele tem esses elementos que nos configuram enquanto identidade pro mundo. É esse suspense ramificado, que é influenciado por tantos outros gêneros, que se permite abrir um parênteses pro humor, pra ironia, que faz rir e faz chocar. Às vezes, tudo isso ao mesmo tempo. Pra mim, ser brasileiro nos dias de hoje é meio assim: viver um gênero, uma catarse ou violência diferente em cada esquina.


Agora, pensando no momento que estamos vivendo em termos de visibilidade, queríamos te perguntar o seguinte: apesar do aumento no número de espectadores no cinema nacional, parece que também estamos muito focados na importância das premiações. Alguns podem até sugerir que o público brasileiro não aprecia o cinema nacional, mas, na realidade, ele se interessa pelo engajamento que o cinema brasileiro gera, especialmente nas redes sociais. Como você acabou de ser premiado em Gramado, com uma visibilidade maior neste momento, pergunto: como você se sente em relação a este momento do cinema brasileiro? Em relação ao entusiasmo, ao engajamento e a todos os fatores que envolvem esses números.


Eu tenho a sensação que estamos vivendo um momento sem precedentes. Não pelo alcance do cinema brasileiro no mundo, que já teve outras ondas, mas pelo tamanho desse alcance, que é resultado dessa nova forma digital de assistir e engajar. E o público brasileiro já se provou poderoso em fazer barulho. A atriz Fernanda Torres chegou a discursar sobre isso. É como se o brasileiro sentisse dó desse mundo que desconhece as coisas que produzimos, que ficam restritas aqui, numa fronteira linguística difícil de transpor. Então, como pode eles não nos conhecerem nesse mundo tão globalizado da Internet? Isso parece gerar uma revolta e a necessidade de "gritar". 


Eu creio que ainda vamos compreender melhor a duração e a permanência disso tudo. Percebo que esses últimos filmes, como “Ainda Estou Aqui” e “O Agente Secreto”, têm feito um bom trabalho nesse sentido; de ter entendido como as redes funcionam para gerar frutos pra si e pros filmes que virão. Me parece uma estratégia muito bem desenhada e de sucesso. E, claro, os prêmios são peças importantes nessa engrenagem porque são validações e reconhecimentos pelo caminho. São símbolos palpáveis. Eu, que venho do universo curta-metragista, sempre me espanto com a repercussão que um longa-metragem pode ter. A internet amplifica tudo isso. As pessoas nas redes sociais falam muito e sem filtro. E agora, além de fazer filmes, a gente ainda parece ser obrigado a ter que filtrar e decodificar essas coisas. 


Desde que lançamos o filme em Gramado, temos recebido respostas bonitas de públicos muito distintos. Claro que as críticas negativas existem, principalmente nos lugares onde todos se tornam especialistas em alguma coisa. Hoje tem rede social de videogame, de perfume, de comida, de jogo de tabuleiro, de café gourmet… inclusive de filmes. Como não existiria? E as pessoas distribuem estrelinhas assim que um filme acaba, de uma forma imediata e imediatista. Pro bem ou pro mal, isso prova que o público brasileiro não é desinteressado. Ele quer expor, quer conversar, quer algo que o atravesse. A graça é que agora essa conversa está acontecendo num boca a boca moderno, para além da sala de cinema ou do barzinho com amigos. 


E é assustador como a gente acessa isso muito rápido. Num clique eu sei o que uma pessoa achou do meu filme, o que é ou não relevante na história que criei… Mas ainda assim, o mais louco nisso tudo é que, mesmo com todas essas ferramentas, esses algoritmos que parecem te carregar pra uma fórmula perfeita (e inexistente) de como fazer um filme, eu ainda sinto um frio bom na barriga quando eu penso uma nova história ou entro na próxima sessão de “Papagaios”. Até aqui, nunca foram as mesmas sessões. Então, alguma coisa tá viva no mundo real.


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