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Um Pássaro, Um Avião, Um Horizonte

Lois Lane (Rachel Brosnahan) e Clark Kent (David Corenswet) em cena de Superman | Imagem: Reprodução
Lois Lane (Rachel Brosnahan) e Clark Kent (David Corenswet) em cena de Superman | Imagem: Reprodução

O cinema de super-herói é o gênero cinematográfico hegemônico dos nossos tempos. Esse lugar já foi ocupado pelo cinema musical, por filmes de guerra e outras instâncias de longas americanos, sempre em retroalimentação com o zeitgeist vigente no território estadunidense. Os glamourosos musicais da Era de Ouro hollywoodiana (como Agora Seremos Felizes, de Vincente Minnelli) ajudaram a impulsionar o mito glorificador do país, que atravessava o trauma das guerras mundiais ao mesmo tempo, em que ostentava os ganhos econômicos do evento. Segundo Kellner (2001) [1], os filmes de guerra com figuras hiper másculas dos anos 70 e 80 (como Rambo, de Ted Kotcheff) eram reações às derrotas dos EUA na Guerra do Vietnã e do masculino clássico pela revolução sexual. Aos super-filmes, coube o pós 11 de setembro e o cinismo que se desenhou no mundo pela ampliação dos meios de comunicação em massa. 


O gênero heróico, lógico, tem sua gênese antes do atentado às Torres Gêmeas, e já carregou consigo perspectivas estéticas muito mais lúdicas do que as que exibe atualmente. A série do Batman de Adam West popularizou as onomatopeias nas cenas de ação, e o Super-Homem de Christopher Reeve posava como um ideal de moralidade onipotente com sua cuequinha vermelhinha por cima da calça. Até o sombrio Homem Morcego de Tim Burton se divertia com a fantasia do gótico. Mas enquanto os quadrinhos que originam esses personagens permanecem um grande caldeirão de arquétipos e mitologias, as suas adaptações cinematográficas foram se tornando mais formulaicas e menos imaginativas. Dessa forma, o super gênero adentrou nos anos 2000 se envergonhando da riqueza que poderia celebrar.


Os X-Men (2000) de Bryan Singer desprezaram a possibilidade de surgir com seus trajes amarelos originais, o Coringa (2019) de Todd Field situou seu anti-herói como vingador em um mundo que em nada parece divergir da realidade, e Deadpool e Wolverine (2024) fez seu protagonista assumir interesses burocráticos do MCU como beats de roteiro e motivação de personagens. Em casos mais viscerais, séries como The Boys e Invincible procuram atrair sua audiência subvertendo a fantasia do heroísmo com espetáculos de violência (muito) gráfica [2]


É claro que há exceções à regra (o Homem-Aranha de Sam Raimi é um bom exemplo), mas parece que essa hegemonia procurou manter o público interessado nesses personagens impossíveis com uma proposta simples: e se o mundo deles fosse similar ao nosso? E esse “nosso” mundo atua sempre como o polo que atrai a fantasia para longe de uma via aspiracional, gerando seu interesse no público quando maximiza em novos patamares medos e desesperanças já conhecidos. Esvazia-se o prazer do fantástico e o potencial da atração de um mundo idealizado. Dessa forma, essas ficções cada vez mais atraem suas audiências por mimetizar a vida cotidiana e os sistemas que a comandam, omitindo a possibilidade de deslumbre com algo além desses limites.


É nesse contexto de alta produção de um “realismo” cada vez mais mórbido que o gênero de filmes de heróis cumpriu o destino que mazelou vedetes e cowboys, e encontrou uma crise de relevância, a chamada superhero fatigue. Foi em resposta a essa atmosfera que James Gunn lançou mão de seu Superman (2025), que retorna com sua cueca vermelha e, na contramão de muitos de seus pares, parece obter sucesso em introduzir um mundo fantástico que não deseja ser um espelho de horrores comuns, mas um horizonte a encontrar.


Vale notar que a proposta estética de Gunn não é revolucionária: seu jovem Clark Kent (David Corenswet) interage com uma variedade de outras super figuras que estão ali para povoar este projeto de franquia cinematográfica. A forma com que o realizador captura as sequências de ação desses corpos sobre-humanos, com a câmera orbitando um caos coletivo, também não é uma invenção recente em seu estilo pessoal. Ela é muito bem observada na trilogia dos Guardiões de Galáxia, grande êxito de James dentro do Universo Marvel. Mas se no MCU o diretor conseguiu alguma liberdade de criação por capitanear a adaptação de um grupo de herois virtualmente desconhecido, seu impacto no universo DC é muito mais seminal. 


O realizador foi nomeado CEO do novo universo cinematográfico DC, herdando a posição após a conturbada tentativa de Zack Snyder de adaptar esses quadrinhos em mundos de tons opacos. O mais recente Superman, portanto, não é uma mera revisão do messias de capa vermelha, mas um indício de como todo esse universo ficcional irá se estruturar em seus ambiciosos desdobramentos. Gunn parece compreender que sua posição dentro da burocracia de produção altera a recepção da estética do seu trabalho, mesmo que esta permaneça uma continuidade tão direta de suas mais recentes explorações. E parece entender, também, a trajetória de cinismo que se desenha nos voos dos heróis contemporâneos - e coloca Clark Kent para combatê-los. 

Cena de Superman | Imagem: Reprodução
Cena de Superman | Imagem: Reprodução

Se afastando de espetáculos imensos de destruição impensada (pelos quais Snyder foi duramente criticado), este kryptoniano passa boa parte da sequência de luta contra um bizarro monstro gigante protegendo civis e evitando a derrubada de edifícios. Enquanto a uma versão teste da Liga da Justiça, que realiza atos de heroísmo como prestação de serviço a uma empresa, utiliza de seus poderes para atacar o monstro, o Superman foca quase que unicamente em evitar a perda de vidas.


Já longe da frente de batalha, o outrora memorável flerte que é a entrevista entre Lois Lane (Rachel Brosnahan) e Superman se transmuta em um ambicioso diálogo sobre a legitimidade do heroi de intervir nos conflitos entre Borávia e Jarhanpur. Lane levanta questões de interesse econômico, política internacional e segue incorporando as facetas da realidade que nos acostumamos a ignorar nos quadrinhos e desenhos animados quando somos crianças. Clark/Superman se agarra às suas perspectivas simples e diretas (“Pessoas iam morrer!”), e embora não consiga responder às questões de sua parceira, permanece impávido na sua moralidade. Gunn sinaliza: um heroi é um heroi porque é bom.


Essa moral claramente não é inédita, particular e muito menos revolucionária, mas atinge um outro patamar de importância por se estruturar através de uma alegoria inesperada: Borávia e Jarhanpur são países fictícios que Gunn utiliza para discutir, de maneira nem um pouco discreta, o genocído na Palestina. E todos os conflitos do longa, sejam eles argumentativos ou físicos, são desdobramentos da tomada de posição do herói contra um aliado econômico dos EUA e a favor de uma pobre nação sendo destruída. Ele demonstra consciência suficiente dessa conjuntura e desprezo pelas consequências que pode enfrentar. Afinal, pessoas iam morrer, e um heroi é um heroi porque é bom. 


Nosso herói, como era de se esperar, vence no final, e é nesse gesto estruturante da narrativa que consiste o super golpe de Gunn: na inauguração de um universo que centraliza a moral ingênua de seu personagem principal, o diretor incluiu um posicionamento sobre um dos grandes massacres do nosso tempo, produzindo esse filme em um país que tem enorme responsabilidade na viabilização desse horror. Em paralelo, muitas das obras “adultas” que desconstroem as super figuras com um senso de niilismo e sanguinolência parecem incapazes de dar conta das complexidades que dizem querer incluir em seus mundos fantásticos. 


Claramente, o lançamento de Superman não é um exercício humanitário. Muitas instâncias burocráticas permitiram que a história avançasse desta forma, e o total dos ganhos financeiros por elas calculados nesse gesto devem permanecer por muito tempo no campo da especulação. Trata-se de um esforço de renovação de uma velha fórmula para tentar investimentos da crise que afeta o gênero fílmico. É notório, no entanto, que foi com a gentileza punk rock de Clark que uma horrenda fatia da atualidade encontrou alguma representação numa máquina de mídia que tanto empreendeu em abafá-la. 


Os cinemas hegemônicos sempre carregam consigo os perigosos interesses dos poderes que os moldam e dispersam, e por isso mesmo suas alterações podem ser sintomas de mudança no espírito dos tempos. O que Superman e sua super-dimensão parecem sinalizar é uma reabertura para uma negociação específica com essa hegemonia, uma que o gênero pareceu negar a ferro e fogo pela última década. Ao posicionar Clark, messias que escolhe ser humano, como algo o suficiente para intervir e encerrar um genocídio em curso, Gunn não sintetiza ou inicia uma movimentação política, mas abre brecha para rejeição do cinismo e para uma indagação ao seu público: e se o nosso mundo fosse como o deles?



[1] O autor Douglas Kellner, em A Cultura da Mídia, indica que os textos midiáticos carregam os valores e interesses das conjunturas políticas e econômicas responsáveis pela sua produção e veiculação.

[2]  Deixo aqui a recomendação do vídeo de Ora Thiago, que elucida sobre a violência como elemento de desconstrução da gênero do super-heroi: Super-heróis, Desconstrução e Violência


 
 
 

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