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Soltem o autor: sobre "Uma Batalha Após a Outra"

Cena de Uma Batalha Após a Outra | Imagem: Divulgação/ Warner Bros.
Cena de Uma Batalha Após a Outra | Imagem: Divulgação/ Warner Bros.

Estamos acostumados a pensar que o autor é tão diferente de todos os outros homens, de tal forma transcendente a todas as linguagens, que ao falar o sentido prolifera e prolifera infinitamente. 

- Michel Foucault, 1969, O que é um Autor?


A figura central de poder observa o espaço, as cadeiras estão dispostas diante do seu campo de visão; os rostos, fixos, carregam um espanto incomum. O homem segura uma arma, um martelo de madeira, e dois auxiliares o acompanham de perto. Nomeado juiz, ele está prestes a julgar. Em instantes decidirá o que é certo ou errado, o que pertence ao bem ou ao mal, quem são “eles” e quem somos “nós”. Mas, antes mesmo de examinar qualquer prova, encara o acusado à sua frente e pensa apenas uma coisa: de que lado o seu filme está?


As reações ao novo filme de Paul Thomas Anderson (para os íntimos, PTA), Uma Batalha Após a Outra, diagnosticaram uma velha doença da cinefilia, o biografismo. Na prática, biografismo é ler a obra a partir da vida do autor, ou, simplificando, transformá-la num instrumento de julgamento moral. É quando a crítica, movida mais por suspeita do que por curiosidade, tenta compreender o filme decifrando o caráter de quem o fez, como se a obra estivesse sob controle total do artista ou fosse extensão direta de suas opiniões.


Daí surgem as perguntas automáticas: O que ele quis dizer com esse prólogo? Por que o revolucionário é tão bobo? PTA apoia o quê, afinal? O cinema, nesse tribunal moral, é reduzido à confissão ideológica. A imagem deixa de ser uma superfície de pensamento e vira apenas prova num processo burocrático de intenções.


Vivemos um tempo em que a ambiguidade é tratada como equívoco, com o cinema contemporâneo parecendo cada vez mais guiado por um desejo de cura, filmes produzidos para afirmar os laços afetuosos, chamam isso de cinema de afeto, o que também pode ser um cinema de correção. Não nego seu lugar nem sua importância; há beleza em ver grupos historicamente marginalizados encontrarem protagonismo. Mas hoje, após acordar às seis e só parar às dez da noite, o que eu quero é sinceridade. Não quero ser salvo em duas horas, quero ser desmontado. 


Em A Morte do Autor (1967), Roland Barthes mostra como a obsessão pela autoria produz uma leitura maniqueísta da obra. Quando o sentido é reduzido à intenção do autor, o texto deixa de ser campo de descoberta e passa a ser um espelho moral. Barthes defendia que o nascimento do leitor deve custar a morte do autor, e no cinema isso vale em dobro. Se já é difícil confrontar palavras, imagine confrontar imagens, que não explicam, apenas insistem ou existem.


Quando a crítica tenta definir o diretor por meio de seus personagens, ativa uma função de controle que o artista perdeu no momento em que lançou sua ideia ao mundo. O filme deixa de ser uma experiência de liberdade para virar um checklist moral, onde se mede o que pode e o que não pode ser filmado.


Desde Boogie Nights (1997), Paul Thomas Anderson filma o colapso de indivíduos diante de um mundo que faz implodirem suas certezas. Se antes o escândalo era um pênis na tela, hoje é a figura de um militante patético, cercado pelas sus próprias paranoias. Em Uma Batalha Após a Outra, ele não filma heróis, filma o que sobra quando as estruturas se desfazem. Há algo de renascimento aí, uma busca por sentido dentro do entulho. E talvez, apenas talvez, esse seja o seu gesto mais político, restituir à imagem o direito de não precisar agradar. 


Michel Foucault, em uma conferência em 1969, na França, ao apresentar sua pesquisa intitulada O que é um autor?, afirmou que o autor é apenas uma função, um nome que organiza discursos e regula sentidos na escrita, no caso, o estudo da obra e a unidade que ela designa são provavelmente tão problemáticas quanto a individualidade do autor. Ciente disso ou não, Paul Thomas Anderson absorve o fracasso político recente dos Estados Unidos para construir ruínas imagéticas de lados que se repelem, mas compartilham a mesma incerteza, a de não saber mais diante do colapso. Suas imagens não buscam resolver o impasse, apenas revelam a falência das simbologias que antes davam sentido ao mundo.


As contradições nascem dos personagens, Perfidia Beverly Hills (Teyana Taylor) e do Coronel Steven J. (Sean Penn). Desde os minutos iniciais, há uma relação de paralelos entre eles, figuras que se reconhecem no desejo de exercício de poder. Durante as atividades do grupo, Perfídia se mostra mais à vontade, performática, quase tarantinesca em sua sexualidade e domínio de cena. Já Steven a persegue, não por desejo de punição ou justiça, mas por fascínio, ele quer capturar essa força e domesticá-la. Não quer matá-la, quer transformá-la em submissa. 


No clímax do prólogo, Perfídia atira em um policial negro e o mata. A partir daí, começa a fuga e a traição, ela entrega os nomes de todos da organização da qual faziam parte seu marido e seus amigos. A imagem do corpo negro caído no chão abriu um campo de dúvida. No Brasil, por exemplo, ainda se discute se a polícia militar é parte da sociedade civil ou apenas o braço armado do Estado, questão que continua em carne viva, especialmente pela violência cotidiana contra corpos negros e marginalizados (alô, Recife). Pensando nisso, Perfídia estaria certa ou errada ao puxar o gatilho pela revolução?


O diretor não se interessa pela resposta. Ele usa a montagem para mostrar que o buraco é mais complexo, uma cratera com componentes espinhosos, com as convicções políticas indo à ruína diante do gesto. Como dito antes, o cinema não dá conta de explicar a história americana, e talvez seja justamente aí que ele encontra sua força, no reconhecimento de que as imagens não servem para resolver o mundo, mas para expor o tamanho do impasse.


Mesmo que o compromisso de Paul Thomas Anderson não seja com o realismo, e talvez por isso mesmo exista esse texto, admiro a sequência final, esse duelo entre rostos perdidos na estrada. A estrada é o cenário perfeito para o confronto: não há muros, só espelhos, carros e armas pequenas tentando resolver as indiferenças de um mundo em colapso. Contudo, por serem estradas construídas por corpos marginalizados; e, diante disso, quem conhece melhor a história daquele concreto?


Em um movimento calculável, a filha de Perfídia (Chase Infiniti), herdeira da traição, usa o próprio território como armadilha contra um agente n4zista que tentava matá-la. Sua vitória é geográfica, ela conhece as brechas, as curvas, o chão que os outros apenas atravessam. A confiança do inimigo, e sua arrogância de se sentir dono do espaço, abre frestas que as “presas” precisam. Fica evidente que nem mesmo as estradas americanas pertencem àqueles que se dizem americanos, onde qualquer curva pode matá-los. 


Discutir se Anderson é de direita ou de esquerda é uma distração de época, típica de quem tem medo da ambiguidade artística. A força de uma imagem está justamente aí, em recusar o conforto das certezas. Em tempos em que tudo precisa ter um posicionamento explícito, há algo de profundamente subversivo em um filme que prefere perguntar e reimaginar. 


O que importa é o cinema, como PTA organizou seu olhar e tempo, restando-nos apenas interpretar, sem martelos de madeiras para aplicar sentenças morais. 


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