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Tereza, a rosa dos ventos de Gabriel Mascaro

  • Foto do escritor: Montez
    Montez
  • 3 de out.
  • 5 min de leitura

Denise Weinberg | Imagem: Divulgação/ Vitrine Filmes
Denise Weinberg | Imagem: Divulgação/ Vitrine Filmes

Era sempre assim que falavam: o país do futuro. Uma fórmula publicitária, suspensa no céu, que soa como promessa, ora possível, ora vazia. No início e no fim de O Último Azul (2025), Gabriel Mascaro retoma essa frase como espectro. O futuro paira sobre a narrativa como um zepelim imóvel, uma palavra de ordem que se arrasta, repetida demais para ainda carregar convicção. Há, nessa ideia, a sensação de que nada começa e nada termina, apenas retorna: circularidade que é também destino. O gosto, entretanto, é diferente nessas pontas do círculo. O cinema de Mascaro, desde seus primeiros filmes, insiste nesse ponto: o que interessa é o caminho, não a chegada. Seus personagens estão sempre em trânsito, suspensos entre a partida e a permanência, ocupando a experiência do deslocamento como se ali residisse a única forma possível de habitar o tempo. E, se o Brasil é esse país do futuro, ele só pode ser narrado a partir de quem o atravessa, de quem se expõe às suas curvas e desvios, assim como um barco que risca a superfície da bacia amazônica.


O porvir para Tereza (Denise Weinberg) se torna uma sentença, não uma dádiva. A Colônia, nome que sugere comunidade, aconchego, um retorno ao sono dos séculos, é, na verdade, a metáfora mais cristalina do que significa envelhecer em um país que se vende como futuro: a exclusão propagandeada como cuidado, o confinamento narrado como prêmio. Aos 77 anos, o tempo de Tereza é administrado pelo Estado como uma matéria a ser realocada para não incomodar a rosa dos ventos. O gesto de Tereza, ainda no início, em descartar o caracol, seguida da repulsa que escorre pelos dedos e encontra a madeira como se fosse preciso se livrar de qualquer vestígio orgânico, é muito semelhante ao mesmo realizado pelas autoridades que pairam nos céus do país do futuro. O corpo de Tereza, como o molusco, é percebido em sua sobra: uma presença inconveniente que precisa ser limpa, deslocada, removida para que o espaço do presente continue disponível aos que ainda se confundem com promessas.


O que Tereza descobre, não como epifania, mas como experiência, é que a liberdade se revela no desvio clandestino. Dançar escondida na fábrica, entre a fumaça gelada que disfarça o cheiro da morte animal, é uma forma de preservar um espaço de respiração em meio ao maquinário que insiste em triturar corpos, sejam eles de jacarés ou de pessoas envelhecidas. Esse mesmo impulso aparece quando ela pensa em voar de avião pela primeira vez ou em simplesmente acompanhar o fluxo lento do rio. O voo e o curso das águas são imagens complementares: a promessa de um deslocamento vertical, rumo ao céu, ou horizontal, pelos meandros fluviais. São modos de sentir o tempo escorrer pelo corpo sem que ele seja medido, regulado por autoridades. Talvez seja esse o paradoxo que o filme inscreve: em um país onde a palavra “futuro” é usada quase como ameaça, o gesto de Tereza é se reconciliar com a duração presente. Não há necessidade de correr entre trevas. Basta deixar que o tempo passe como fluxo. 


E a aplicabilidade de tal ato por parte da protagonista fornece a Mascaro a possibilidade de explorar dentro da imagem aquilo que sempre foi central em sua obra: o corpo como território de pathos, como espaço atravessado por experiências que o modificam, que o colocam em outro patamar daquele que grita o pálido. Mascaro registra uma personagem redescobrindo seu corpo e sua vida, propondo uma contra-imagem. Pode soar como exagero propor tal ideia, é verdade, sobretudo se lembrarmos que o cinema brasileiro dos últimos anos tem se voltado, com frequência, para as revoluções silenciosas que se inscrevem nos corpos a partir das atitudes mais banais. Mas em O Último Azul esse gesto ganha outra camada, não porque Tereza representa uma síntese coletiva, e sim porque Mascaro decide inscrevê-la formalmente em uma ruptura através de pequenos destinos. O que interessa não é apenas o ato em si, mas como a imagem é capaz de inscrever  aquilo que, na prática, desmonta uma ordem inteira.


Em outros termos, o tempo levemente dilatado, bebendo de Apichatpong Weerasethakul, mas sem a mesma durabilidade; a opção por um formato de tela mais quadrado, recusando deslumbrar-se pela paisagem que frequentemente é representada por meio de estereótipos datados; e a atmosfera que nunca permite esquecer a presença da opressão, é o que dá densidade àquilo que, em outro contexto, poderia ser lido apenas como metáfora política. A forma não surge como recurso de estilo, como uma cortina de embelezamento como já escreveu Walt Whitman; a forma escava. O futuro surge diante de Tereza como o passado diante dos olhos do anjo da história de Walter Benjamin: com clareza. Para Tereza evidencia-se de forma incontornável que aquilo que parecia distante já se encontrava diante de si. As gotas da baba azul do caracol é o futuro como revelação, que ilumina e torna visível. É nesse instante que o que parecia opaco se abre em nitidez. A baba azul oferece a visão de que a travessia será feita e que nela há os sinais de liberdade.


Tereza abraça esse futuro da mesma maneira que o barco corta o rio, entendendo que o movimento em si já é uma forma de resposta. A câmera, então, age como um lampejo do presente, vislumbrando o porvir. É nesse intervalo que Mascaro se distancia da mera distopia, ou seja, ele não filma a opressão para reiterá-la, mas para expor o modo como, dentro dela, ainda pulsa uma possibilidade de invenção. Assim, Tereza não é apenas personagem, mas corpo-imagem. Em outras palavras, a protagonista encarna um campo de forças e intensidades, em constante modificação pelas sensações que a atravessam. Quando se mostra resignada, o próprio filme parece adotar esse mesmo compasso. Mas, no instante em que ela se abre, a matéria fílmica também se expande, sendo tomada por dilatação e temporalidade. Se o Estado anuncia o futuro como horizonte, a imagem insiste no futuro como abertura de presente. E é nesse ponto que a imagem se deixa contaminar pela poesia, como se a travessia de Tereza fosse também a de uma natureza que se recusa a obedecer à geometria dos mapas:


A rosa dos ventos danou-se,

o leito dos rios fartou-se,

e inundou de água doce

a amargura do mar.


É então que O Último Azul, no olhar demorado sobre a correnteza, aponta sua protagonista como a própria rosa dos ventos que Chico Buarque escreveu em sua música e que Bethânia traduziu com intensidade em sua interpretação. Seu corpo, seu desejo pela vida, transforma-se em uma enchente amazônica, numa explosão atlântica e ela observa, com os olhos preenchidos do futuro azul, ainda que tarde, o seu despertar. 


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