
Se a célula é o elemento básico do ser vivo, o plano seria o elemento básico da linguagem cinematográfica. É uma pincelada silenciosa que dá vida ao quadro estático, um fragmento encapsulado da narrativa que respira, murmura e sussurra aos olhos do espectador. Sua temporalidade, os chamados vinte e quatro quadros por segundo, são pulsos da respiração do filme, uma batida cardíaca que tece a trama do tempo. Tais metáforas seriam exacerbadas para diversos filmes, mas se aplicam de forma precisa a Culpa e Desejo, novo longa-metragem de Catherine Breillat. Adaptação do drama norueguês Rainha de Copas (2019), de May el-Toukhy, o filme explora a relação afetiva e sexual entre Anne (Léa Drucker), uma advogada de causas de abuso infantil, e Theo (Samuel Kircher), seu enteado. Se o conteúdo, por si só, já é provocador, a cineasta francesa faz escolhas estéticas incitando o tensionamento não apenas da relação entre diegese e espectador - afinal, tal ponto já é esperado e, de certa forma, não tão chocante assim, se olharmos a obra da cineasta em retrospecto - mas sim do plano cinematográfico.
Logo, seria muito fácil - e simplista - mencionar a palavra "provocador" no parágrafo anterior e utilizar adjetivos semelhantes durante o resto do texto. Mas a função aqui é justamente entender as bases de utilização dessa palavra. Para isto, cabe a menção de três planos (entre vários) do filme. O primeiro, ainda no terço inicial, é entre Anne e seu marido, Pierre (Olivier Rabourdin), em um plano fechado do rosto dela, enquanto seu ele pratica o ato sexual. A expressão facial da personagem de Drucker em momento algum demonstra prazer, praticando um monólogo de reminiscências de seu primeiro desejo sexual como tal, como se o seu prazer estivesse diretamente ligado à juventude, ainda que ela diga que não. Breillat em momento algum decupa a cena de forma a exibir o rosto dela e de Pierre. O foco da narrativa é como Anne é capaz de provocar e ao mesmo tempo dissimular seus desejos diante do marido. Notemos como o alongamento do plano permite que o espectador observe cada detalhe cênico, cada possibilidade entregue pela imagem e pela voz de Drucker.

O segundo plano a ser destacado está presente na segunda metade do filme, quando a consumação do ato sexual entre Anne e Theo já aconteceu. Novamente, o enquadramento que Breillat opta por é o da face da protagonista. Dessa vez, porém, a câmera está mais próxima. Se na cena supramencionada ainda conseguia-se observar o corpo de Pierre movimentando-se, aqui quase não há tal possibilidade. O que importa é o rosto de Anne e como seu corpo sente o prazer. De olhos fechados, ela geme até emudecer. A temporalidade do plano estica-se até o ponto de corte: nele, a respiração e os murmúrios da advogada abrem espaço para que o espectador perceba-se como voyeur numa acepção em que o prazer mistura-se com a repulsa em igual proporção. Em outros termos, enquanto o espectador sente-se estimulado a observar os caminhos a partir daquele momento, ele é convidado a sentir repulsa pela situação em si. É então que a ideia de plano se estabiliza como tensão entre a observação voyeurística e desconforto; a pulsão entre aproximação e distanciamento.
Breillat entende que, como unidade básica fílmica, o plano torna-se engajador de afetos, sejam eles positivos ou negativos. Mas, mais que isso, a cineasta guarda interesse nos enfrentamentos possíveis a partir do olhar espectatorial. Muito mais que o choque ou um desenlace, Breillat percebe seus personagens não como pedras de um tabuleiro narrativo, mas como corpos passíveis de encadeamentos conflituosos internos e externos, nunca oferecendo diretamente respostas, mas uma incessante busca profunda, pois nada se desvenda de maneira tão simplificada; tudo se emaranha na complexidade intrínseca do ser humano. A diretora permite, por isso, que seus planos se alonguem, até existirem no limiar entre o conforto e o desconforto. E, nesse processo, o olhar espectatorial passa pela observação de cada detalhe e de cada textura. Anne se torna mais que uma protagonista com atitudes condenáveis; ela coexiste entre a insatisfação em um casamento e o prazer com o jovem, entre a justiça como advogada e a manipulação de sua relação.

Esses conflitos conseguem ser sumarizados através da linguagem e pelas possibilidades oferecidas pela encenação. Observemos, como último exemplo, um dos mais magistrais planos do cinema esse ano. Pierre decide levar Theo para uma cabana, a fim de que eles se unam como pai e filho. Ao mesmo tempo, Anne havia acabado de encerrar sua relação com o jovem, deixando-o completamente transtornado. Neste momento específico, Pierre e Anne estão sentados à mesa sob o sol, tomando café da manhã, enquanto Theo está no interior da casa, separado do casal apenas pelo vidro da janela. O pai não faz ideia do que está acontecendo, enquanto Anne tem certeza de que, durante essa viagem, Theo, que está apenas sem camisa - um reflexo do garoto que representa desejo para a madrasta e um jovem inconsequente para o pai - vai contar tudo. Breillat reúne uma profusão de conflitos, de sentimentos em um único e alongado plano. Por isso que a comparação inicial não se revela exagerada: tanto a célula quanto o plano exibem uma verdade intrínseca que transcende a superfície, convidando-nos a explorar as complexidades que habitam nas entrelinhas da existência e da narrativa cinematográfica; nas emoções que pulsam no âmago de cada célula e de cada frame.
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