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“Enterre Seus Mortos”: Um Filme Pré-Apocalíptico

Enterre Seus Mortos | Imagem: Divulgação / O2 Play
Enterre Seus Mortos | Imagem: Divulgação / O2 Play

Frente às cada vez mais populares perspectivas apocalípticas, a resposta cultural mais comum é pensar no mundo depois do seu fim, o que por vezes é acompanhado de um revigorante recomeço da civilização pós-apocalipse. O terror de Enterre Seus Mortos reside na inversão dessa perspectiva: nada mais aterrorizante do que um mundo prestes a acabar que, no entanto, não acaba, um mundo cujo fim iminente parece inclusive ignorado. É sob esse olhar que o diretor Marco Dutra constrói um mundo de angústia, em que o medo ainda não se confirmou no desesperante fim de todas as coisas, mas não obstante se mantém suspenso, pairando sobre um conjunto de relações entre as personagens e o mundo cuja conexão física é tão escassa que parece imperceptível. Uma objeção comum na recepção crítica do filme é justamente a respeito falta de coesão entre as suas partes, tanto em termos de estrutura narrativa, quanto em ideias traduzidas esteticamente que fazem referência do horror B ao sci-fi; de outro modo, defendo que está aí a grande potência da obra, na medida em que é propriamente a desconexão entre seus elementos que traz a unidade de estilo do filme.


O protagonista Edgar Wilson (Selton Mello), que trabalha em uma empresa que recolhe animais mortos, é marcado desde o começo pela sua impassibilidade frente ao próprio serviço detestável, ao sofrimento das outras pessoas e, talvez por extensão, à apatia sentimental perante a própria vida. Seu companheiro de serviço é o padre excomungado Tomás (Danilo Grangheia) e sua chefe é Nete (Marjorie Estiano), com quem Edgar mantém uma conturbada relação amorosa. O ambiente de Enterre seus Mortos é majoritariamente interiorano, com uma pequena incursão na metrópole esvaziada que se distingue do interior pela dimensão, mas carrega o mesmo sentimento de desconexão. A companhia em que trabalha o elenco principal exibe no interior de sua sede a imundície da indústria precária, cujo trabalho é tão duro quanto nojento (a empresa não apenas recolhe os cadáveres dos animais, mas os mói e processa). Há também o pano de fundo da trama que pouco vemos: há uma doença, contraída especialmente pelas crianças, que assola o povo; há postos de controle de tráfego nas estradas e um medo da doença generalizadamente irracional compartilhado por todos. Por fim, há uma seita religiosa com contornos ascéticos de um cristianismo alucinado cuja clareza de salvação transcendental é diretamente proporcional à ofuscação da materialidade daquele mundo prestes a acabar. Em suma, são essas as forças que exercem influência dispersa umas sobre as outras, as forças entre as quais se instalam relações que não parecem senão acidentais.


Na fictícia cidade interiorana de Abalurdes — onde a trama se desenrola —, o verde da grama que envolve a cidade forma um plano de fundo tão homogêneo que parece anular a sua profundidade, de modo que todo o ambiente é cercado por uma cor tão pura que o mato parece compor todo o exterior daquele local. A vastidão da vegetação, representada por meio do verde puríssimo, isola Abalurdes mais do que geograficamente: é também um isolamento estético (o verde marca o limite da tela) e religioso (não se percebe um além-mato fonte de salvação). A pureza do verde, ou a impressão de um verde puro, demarca o limite do plano mais do que o sensor digital da câmera, e o filme estabelece essa tendência de representação cromática pura que é também produto das relações cada vez mais desconexas que povoam esse mundo — assim, a sensação de um verde único e totalizante que limita o ambiente cênico promove o achatamento do extra-plano. Sem o lado de fora, o lado de dentro do plano é tudo o que há, e o sentimento de abandono atribui à seita religiosa que promete uma salvação divina o caráter suspeito e absurdo. Absurdo esse atribuível à incomensurável proporção do deus que falta, cuja única correspondência restante é o horror cósmico totalizante. O verde, então, marca o limite do real. É uma impressão que de tão homogênea oprime tanto quanto desconecta e aplaina as possibilidades de extensão do espaço fílmico, assim como aplaina o sentimento de proteção metafísica — dessa forma, o exterior a esse espaço, assim como a esperança por auxílio (de qualquer natureza) parece sempre inacessível ou inexistente.


Não é que o filme assuma um terror completamente realista, no sentido de que não haja espaço para a representação fantástica do horror. Muito pelo contrário: as referências incluem o horror cósmico, o terror de possessão, a estranheza de uma ficção científica deslocada, e por aí vai. A questão é que tudo o que aparece como visualmente absurdo pertence a este mundo e a nenhum outro, a materialização é total. Aliás, pelo que o filme deixa perceber, não há outro mundo, e com isso se soma o modo de existir desolado que resta aos personagens desse lugar condenado. É como se a desconexão entre os elementos permitisse ver aquilo que há no vão que se instala entre eles: os monstros e os fantasmas vêm sempre de dentro do plano, e passam a ocupar o espaço aberto pelo afrouxamento das relações físicas, que já pouco se chocam. Por outro lado, o filme também não assume tom psicologizante, ou pelo menos mostra uma incapacidade de racionalização dos fenômenos psicológicos dos personagens. Isso vai desde um perene mistério que envolve a condição mental de Edgar quanto, por exemplo, à falta de vontade do protagonista em conhecer as razões da excomunhão do companheiro (ex-)padre. Essa inexplicabilidade dos fenômenos, que tem como consequência comentários tanto políticos quanto religiosos, serve como meio para a representação dessa desconexão entre os personagens e o mundo — que assume aparência de doença materializada em cada elemento do longa —, tornando tudo alheio a tudo.


Enterre Seus Mortos | Imagem: Divulgação / O2 Play
Enterre Seus Mortos | Imagem: Divulgação / O2 Play

Temos no clímax no filme uma cena emblemática dos assuntos tratados: a tentativa de exorcismo de Edgar. Em resumo, o padre Tomás acredita que Edgar está possuído por um espírito assassino e tenta exorcizá-lo dentro do carro. A esse ponto, a relação entre eles já estava um tanto conturbada, especialmente após a morte de Nete e a decisão do que fazer com seu corpo. A cena é talvez a mais interessante do filme: a sombra noturna do interior do carro tende também a um preto puro e a decupagem é basicamente composta por um plano-contraplano que alterna entre Edgar e Tomás, com planos intercalados do interior de um banheiro de shopping, em que Edgar, mascarado, cumpre seu trabalho como então matador de aluguel, e tira a vida de uma garota — espécie de pecado original que desencadeia a crise de consciência (e de personalidade) do personagem, que o padre interpreta como possessão. A relação entre os acontecimentos passados é apresentada de um modo um tanto ambígua, com reinterpretações das memórias de Edgar ao longo do filme. O próprio Selton Mello parece atuar em uma fronteira difusa da própria personagem, rompendo com uma barreira impassível que a marca pela maior parte da obra, e assumindo um tom cômico que mais parece sua versão de Chicó em O Auto da Compadecida. Tudo isso nas sombras, mal vemos o seu rosto, como se o escuro fosse também um preto puro limite, que transforma aquele limite do verde numa ausência de cor com impressão de totalidade. As cenas interpostas do banheiro do shopping são de um branco contrastante tão puro que o desconforto ao olho é mais físico do que nunca, e parece isolar naquele espaço a figura grotesca do assassino mascarado e a inocência da menina prestes a morrer. A dor de Edgar é quase literalmente transportada à vista do espectador, a quem os olhos também doem com a alternância entre o preto e o branco absolutos, em um movimento de crise, mas mantendo em comum também com o verde a sensação de desconexão física e a planeza da imagem que a homogeneidade cromática promove.


No entanto, o exorcismo falha, e o padre é morto por Edgar (ou, quem sabe, por aquilo que o possui). Do discurso exorcizante do padre sobra apenas um conselho a Edgar: “enterre seus mortos”. Nete também morre, por consequência de um envolvimento seu com a seita, e seu corpo é levado não sem conflito a uma antiga amiga de Edgar, que possui um laboratório na capital onde pesquisa cadáveres — os quais são postos em suspensão, como manequins empalhados. Lá, Edgar descobre também o corpo suspenso de sua mãe, cujo paradeiro desconhecia. O laboratório é o ambiente mais próximo de uma ficção científica que o filme exibe, cuja grandiosidade tecnológica e arquitetônica impõem uma distância inclusive no seu interior que parece refletir a desconexão do mundo ao redor. Edgar chega a entregar o corpo de Nete, mas a cena que se segue é a tentativa de exorcismo já descrita. Apesar do surto homicida do personagem de Selton Mello, o conselho do padre se mantém: “enterre seus mortos”. Assim, mediante mais violência ele recolhe o corpo de Nete, de Tomás e da sua mãe, e os enterra. Esse evento é altamente dramatizado com uma câmera se movimentando com trejeitos de um filme de ação, uma iluminação que mistura as sombras da metrópole com as cores morbidamente vibrantes e uma trilha sonora empolgante — todos elementos que desaparecem abruptamente uma vez que o sepultamento termina, abortando qualquer perpetuação do êxtase violento de Edgar. Esse gesto de Edgar rompe com a inércia apática do mundo prestes a acabar. Se a suspensão da morte e a indiferença frente aos cadáveres marca um terror perene que desloca os elementos desse mundo, o enterro, ao contrário, confronta essa suspensão e parece reestabelecer uma conexão entre personagem e mundo, afinal, para Edgar aqueles são “seus mortos”.


No fim do filme, Edgar retorna a Abelurdes e vemos o céu se encher de vermelho — também um vermelho quase puro, que tem como efeito a mesma homogeneização do verde, do preto e do branco já tratados. O vermelho do céu se contrapõe principalmente ao verde da mata que novamente cerca a pequena cidade e parece o sinal derradeiro do apocalipse. Edgar chega a interagir com a seita e o filme revela que a única criança presente na seita (e na cidade) é alguma forma de monstro cósmico. É como se o olhar de Edgar agora conseguisse enxergar para além da aparência dada das coisas — a reconexão com a vida e a morte pôde, agora, reestabelecer uma conexão direta entre personagem e mundo. Talvez o vermelho do céu seja simplesmente o que antes nos parecia azul. Desse modo, o filme termina com um mundo ainda condenado, mas sem qualquer cinismo que disfarça as falsas promessas de salvação ou o envolvimento dos personagens com o mundo e entre si mesmos. O mundo ainda está doente e a escolha de fechar a trama com um retorno à seita e com a revelação da identidade da criança retoma a incontornabilidade do comentário político que o longa adquire ao priorizar a materialidade de todos os fenômenos, do mais absurdo à violência mais direta.


A doença das crianças revela, talvez, pouca esperança com o futuro, e não é à toa que toda a trama do filme é marcada por relações de trabalho (os empregos de Edgar, o laboratório da amiga, etc.). São muitos ainda os elementos que poderiam ser tratados de maneira que se somassem às diversas discussões que o filme suscita, mas seu núcleo é esse: a solução da trama depende de uma reconexão com um mundo que parece cada vez mais interpôr distância entre suas partes. Em um mundo pré-apocalíptico, a aceitação da morte se torna mais necessária do que nunca, não como vontade de acelerar o fim, mas como maneira de entrever as crises ali postas, que são de origem política, religiosa, de trabalho. Assim como o mundo não acaba de fato, não há de fato uma tomada de ação frente à situação apocalíptica, mas há uma tomada de consciência, que só se torna possível quando a morte não se encontra em estado de suspensão.



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