Seria "Missão Impossível - O Acerto Final" um filme humanista?
- João Mauro Cursi
- 23 de mai.
- 6 min de leitura

O novo e pretensamente último capítulo da franquia Missão Impossível chegou aos cinemas. O tema é o mesmo dos últimos capítulos: a ameaça meio etérea da inteligência artificial que aspira à dominação global, mas dessa vez a narrativa parte para a defesa de um humanismo [1] que conectaria toda a humanidade como reação necessária à artificialização da inteligência e, com isso, das relações humanas. Há um grande porém nesse discurso: a figura de Ethan Hunt, Tom Cruise, em um ilustre caso em que personagem e ator praticamente representam uma coisa só. Como é possível tratar de uma universalização da vida humana a partir da figura individualmente heroica do protagonista? É sobre esse dilema que a obra se constrói e é basicamente esse mesmo dilema que o filme alcança.
Primeiramente é preciso situar as referências. Os filmes da franquia Missão Impossível, especialmente os três últimos, dirigidos pelo Christopher McQuarrie, avançaram diretamente na direção de uma ação que soubesse evocar os mais diversos sentimentos. O capítulo anterior, Acerto de Contas Parte 1 (M:I 7), já brilhava na capacidade de criar comédia, suspense e romance a partir da ação. É um esquema estético que se assemelha muito à obra de Buster Keaton, mas com as suas particularidades; se Keaton mantinha uma linha da comédia-ação que se alongava ao limite das cenas individuais até gerar um drama que se originava da conexão entre as partes, McQuarrie (e inevitavelmente Tom Cruise) conseguem remeter aos mais diversos gêneros a partir da manutenção de uma ação (que não é necessariamente cômica) comum aos espaços do filme e contínua em sua duração que estabelece certa conexão entre os personagens que é por vezes, — aí sim — cômica, tensa, romântica, dramática.
Essa conexão da qual eu falo emerge da abstração formal da ação. Não à toa, algumas das mais célebres cenas da franquia são aquelas em que Tom Cruise corre à máxima velocidade. Existe, sim, um motivo do enredo que o põe em movimento: tudo depende da chegada de Ethan Hunt ao seu objetivo, mas também as cenas de corrida bastam em si mesmas; abstrai-se a situação e a ação de correr é tomada em sua forma, que é universal a todo ser humano capaz de correr (ou talvez àqueles que aspiram à corrida). A corrida por necessidade do mundo no qual ele se insere (talvez seu interesse romântico morra caso ele não a alcance a tempo) é, pois, um exemplo de universalização da ação a partir do indivíduo hiper-individualizado de Hunt/Cruise.
Neste último filme, fundamentada no tema da colaboração mútua como último recurso da humanidade, a montagem opera segundo dois esquemas: ou é convergente ou estabelece elementos comuns em paralelo. No primeiro caso, ocorre, por exemplo, a sequência inicial, em que os cursos de diferentes ações são mostrados, do começo ao fim, mas que eventualmente desaguam em uma trajetória comum a partir da qual a grande narrativa do filme se desenvolve. No segundo caso, mostra-se duas ações simultâneas, uma individualmente executada por Ethan Hunt e outra, pelo elenco de apoio; a montagem é realizada de tal modo que ambas as cenas, mostradas em paralelo, exibam um ritmo comum, uma mesma trajetória, que une as duas ações em uma única ação maior que engloba virtualmente toda a ação do filme. Os dois esquemas revelam uma tentativa de universalização da ação a partir de situações particulares.

Sobre esse segundo esquema da montagem, gostaria de trazer o filósofo Gilles Deleuze à discussão. Quando ele fala sobre o filme burlesco, tradição da qual Keaton, Chaplin, Lloyd e cia. fazem parte, ele destaca especialmente a piada posta em trajetória ao limite pela ação de Keaton e a aproximação de uma situação e uma ação distantes pelos pequenos gestos do Chaplin [2]. É evidente que Tom Cruise não é Chaplin e Ethan Hunt tampouco é Carlitos, mas cabe aqui analisar o quanto essa análise é aplicável a Missão Impossível, franquia que com fortes heranças do burlesco no cinema hollywoodiano contemporâneo. Se a ação de Carlitos remete a uma situação incalculavelmente distante e, com frequência, mais universal do que sua própria ação individual, o mesmo não ocorre em Missão Impossível. Primeiramente, a conexão do filme de Tom Cruise é sempre entre duas ações, explicitamente mostradas em tela, de forma que uma sempre remete a outra, e dificilmente geral uma abstração que corresponderia a uma forma de ação mais geral, que talvez abarcasse toda a humanidade. Ainda assim, essa conexão formal entre as diferentes ações parecem, sim, estabelecer um ritmo em comum entre os diferentes personagens e evidenciar certo aspecto comum entre eles, que é comum a eles enquanto seres humanos.
É nos momentos mais emblemáticos do filme que essa universalização pela forma é mais eficaz, mas curiosamente isso depende pouco da ação. Há a cena em que Ethan Hunt entra em contato direto com “A Entidade” (a IA vilã do filme) e, em um zoom-out virtual vemos uma identificação visual entre o planeta em chamas (visão apocalíptica da IA), a representação da Entidade e o olho de Cruise, que é atravessado pelos seus destinos de maneira quase messiânica. Noutra cena, Grace (Hayley Atwell) segura em suas mãos a Entidade aprisionada em um dispositivo brilhante, que se acende diante da escuridão e ilumina pouco a pouco os rostos dos personagens secundários com uma aconchegante luz amarela, estabelecendo forte conexão afetiva entre eles. Em ambas essas cenas, há uma conexão visual bem evidente que, ao eliminar o discurso falado, potencializa a forma da imagem que remete mais facilmente a um universal da humanidade.
Sobre esse aspecto, é interessante pensar a grandiosa cena do avião, em que a obra mais se aproxima dos filmes burlescos, promovendo inclusive um riso meio sádico sobre as personagens (mas nunca sobre o protagonista). Nessa cena, o diálogo é praticamente todo eliminado. Não só isso: também a música para e basicamente não há trilha sonora, fazendo uma espécie de sequência silenciosa. Cabe-nos especular o que em comum essa ação silenciosa tem com Keaton e talvez com Chaplin. É perceptível que há uma estrutura semelhante, inclusive por conta do expressivo realismo decorrente da ação realmente executada por Tom Cruise, tal como Keaton. Essa estrutura parece colocar todo o ambiente (a situação) imediatamente contra a ação do protagonista, que não obstante triunfa sobre ela. Esse esquema (com exceção do triunfo necessário) é — de modo grosseiro — a definição de Deleuze do filme burlesco, mas o resultado do filme do McQuarrie é, contudo, um tanto diferente, pois a esse ponto da franquia, a superação da situação perversa que assola Hunt não é só provável, como esperada — na contramão dos casos de Keaton e Chaplin. Como se faz, então, um palhaço que sempre se dá bem, que é mais sério do que engraçado, que faz rir apenas dos outros?

Veja, não clamo por mera verossimilhança, que é geralmente um clamor mais exaltado do que bem fundamentado. O problema não é o triunfo inevitável, mesmo porque esse triunfo poderia, sim, representar um ideal humanista bastante forte e em consonância com a narrativa do filme. Há, entretanto, um obstáculo, que é a condição desse triunfo coletivo à figura individual de Hunt. Conforme discutido, não creio que seja impossível a abstração universalista a partir da forma particularizada no indivíduo, mas, apesar do caminho para essa direção que o filme toma, a hiper-espetacularização da figura individual do Tom Cruise põe, ao fim, uma dúvida sobre o espectador: a ação é pelo bem do mundo ou pelo bem desse único homem?
Além disso, há o agravante estadunidense: apesar do enredo valorizar acontecimentos internacionais, em última instância o destino do mundo é posto nas mãos da presidente dos Estados Unidos. Os russos não são exatamente vilanizados, mas suas ações mais atrapalham a ação dos heróis do que ajudam. Ethan Hunt, claro, é estadunidense, assim como boa parte de sua equipe (à exceção de um ou dois ingleses e uma francesa). Não é um discurso ufanista acrítico sobre os EUA; está mais para uma má consciência americana que o filme opera ao retratar a presidente como uma mulher negra em um aceno de representatividade, mas representar nela todos os ideais da cultura estadunidense, que não são necessariamente alinhados à representatividade de grupos minoritários. O destino do mundo depende do mundo todo, mas a palavra final é dos Estados Unidos — no filme, por mera contingência.
Enfim, o filme não necessariamente fracassa ao promover uma ação que abstraída remete a um universal humanista, mas o longa tem empecilhos demais para a plena concretização desse ideal. A hiper-individualização da figura heroica de Tom Cruise entra em choque com a eventual representação individualizada da humanidade neste único homem. O filme remete com certa competência ao burlesco e ao Keaton e a Chaplin, mas, longe disso, Ethan Hunt é plena figura protagonista de um filme blockbuster do século XXI, de sorte que há também um choque temporal entre os astros. Talvez a incansável cruzada horizontal de Tom Cruise de um lado a outro do plano não seja conciliável com a vertical figura heroica que é construída sobre ele.
[1] Entendo, aqui, “humanismo” em um sentido amplo, como um pensamento que encontre e defenda certo princípio comum de valorização da humanidade precisamente a respeito de suas habilidades mais propriamente humanas, incluindo a colaboração.
[2] cf. DELEUZE, Gilles. Cinema 1 — A Imagem-movimento, tradução de Stella Senra, São Paulo, e Editora 34, 2018 (p. 257-268).
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