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A Balada dos “Pecadores”

Foto: Divulgação/ WarnerBros
Foto: Divulgação/ WarnerBros

Reza a lenda que foi justamente em uma encruzilhada no Delta do Mississippi onde um dos maiores nomes da história do blues, Robert Johnson, fez um acordo com o diabo, em troca de uma habilidade extraordinária para fazer música. E, embora Pecadores (2025) não seja uma cinebiografia, o segundo filme original de Ryan Coogler celebra o legado do gênero e da cultura afro-americana justamente através do imaginário folclórico inerente ao cancioneiro do blues, ritmo que transformou a música no mundo inteiro e desempenhou um papel central na construção de uma identidade afro-estadunidense - “Blues é música nativo-americana”, como defendido por Amiri Baraka.


Pecadores conta a história dos gêmeos Smoke e Stack (interpretados por Michael B. Jordan), e o primo Sammi (interpretado pelo talentoso estreante, Miles Caton). Depois de um período trabalhando para a máfia em Chicago, os irmãos voltam ao Mississippi, na intenção de abrir um juke joint em um celeiro comprado de criminosos da Klu Klux Klan. É também no mesmo estabelecimento que Sammi, filho do pastor, pretende se lançar como bluesman. Entre violões, banjos, vampiros e demônios, o enredo se desenrola em um único dia de 1932 no Mississippi, durante a era da Lei Seca e do Jim Crow. 


No fade in inicial, é a trilha sonora de Ludwig Göransson que primeiro nos chama a atenção: uma sobreposição de cantos celtas, vocalizações, batuques da África Ocidental e batidas de hip-hop - a gênese do blues e o que dele também se originou. Quando a tela se ilumina, o que vemos são as páginas de um livro que nos relembram brevemente sobre contadores de história: poetas irlandeses, firekeepers de tribos nativas americanas, bardos e griôs. Agora, passado o prólogo, finalmente estamos no Delta do Mississippi e, em primeiro plano, vemos Sammi, aterrorizado e ensanguentado (carregando seu violão quebrado), à procura de refúgio na igreja de seu pai, que lhe pede para largar o instrumento e a vida profana. Se, na analogia de Coogler, os músicos do blues são como griôs da história afro-americana, é o próprio diretor quem se propõe a historiografar as raízes do gênero musical. Ao se preparar para a inauguração do bar, Smoke e Stack passam por campos de algodão e de trabalho forçado, ouvindo seus cantos; recrutam artistas conhecidos na região, caso do guitarrista Delta Slim (Delroy Lindo); além de presentearem Sammi com um violão que eles dizem ter pertencido a Charley Patton - outro grande nome do blues. A música surge como registro oral da história coletiva, em meio à terrível segregação à qual os negros estadunidenses estavam sujeitos.

Divulgação/ WarnerBros
Divulgação/ WarnerBros

A estrutura de ensemble é herança do trabalho de Coogler com as adaptações de quadrinhos. Assim, Pecadores está mais próximo desses trabalhos do que do longa de estreia do realizador, Fruitvale Station (2013). Na maior parte do tempo, há um equilíbrio harmônico entre o coletivo que orbita o entorno dos protagonistas. No entanto, na transição, alguns vícios aparecem. As batidas dramáticas se perdem no escopo grandioso das sequências de ação e acabam não carregando o peso emocional para estes momentos mais íntimos, à exemplo do desenvolvimento de personagens secundários e do drama familiar entre Smoke e sua companheira, Annie (Wumi Mosaku). O que de fato funciona como uma parceria silenciosa na construção da atmosfera austera é o trabalho de fotografia encabeçado por Autumn Durald Arkapaw. Em claro contraste com o humor que permeia a narrativa, especialmente no que concerne aos planos abertos, o Delta aparece como um lugar esparso e inóspito.


Ainda operando dentro do sistema dos grandes estúdios, mas com alguma liberdade, Coogler humaniza seus protagonistas, afastando-os do esquematismo próprio aos filmes de heroi. Os gêmeos interpretados por Michael B. Jordan nunca são retratados como figuras envernizadas, dentro dos paradigmas binários de “bom” e “mau”. A caracterização do metade vampiro/metade demônio Remmick (Jack O’Connell) também pende para o humor sombrio. O vilão e sua prole de mortos-vivos da Ku Klux Klan cantam e dançam folk irlandês vigorosamente. Assim como nas canções do blues, os monstros e criaturas são alegorias para as violências de uma vida social comum - como as mazelas do racismo e a apropriação cultural.


A condução da mise-en-scène também goza de autonomia. Longe da esterilização do universo dos super-heróis, Coogler hibridiza gêneros, exagera no sangue, no sexo e no humor – é quase como a queda de um “Código Hays” pessoal. Se Pecadores é um filme sobre legado, o longa também volta aos clássicos no que tange ao cinema de horror. O excesso visual (no gore e na horda de vampiros) nos remete aos trabalhos de Carpenter e Romero. Os monstros seguem a cartilha cômica e basilar de sua genealogia – envolvendo presas, alho e estacas de madeira. A violência adotada aqui ganha um tom transgressivo quando se mistura à comédia (física e textual), convidando os espectadores a rirem daquilo que convencionalmente não deveria ser engraçado.

Foto: Divulgação/ WarnerBros
Foto: Divulgação/ WarnerBros

No entanto, nada se mostra mais subversivo e ousado do que um número musical mais para a metade do filme. Na sequência em questão, Sammi canta e toca com todo vigor e, sob seu encanto, os demais começam a acompanhá-lo (e nós, espectadores, também!). Na medida em que os corpos se movem, a câmera acompanha os movimentos sinuosamente. Os pés pisam tão firmemente no chão que se somam como percussão à melodia do cantor. O ritmo acelera e a trilha de Göransson é um amálgama de melodias tribais, guitarras elétricas e mixagem de DJs. A música do jovem é tão potente que conjura espíritos do passado e do futuro - e agora MCs, guitarristas com ares de Prince e dançarinos igbo mascarados tomam a pista de dança. A cena segue em um crescendo até alcançar seu ápice, quando o teto do celeiro entra em combustão. O Delta do Mississippi agora está em chamas pela pura força da música. “Em noites como esta, salvamos nosso povo e nos libertamos”, diz a narração em off.


Se, diegeticamente, a música de Sammi tem poderes sobrenaturais, é o trabalho de Coogler e equipe que lança um feitiço sobre os espectadores. A combinação dos movimentos de câmera e da mixagem de som na sequência não é nada menos do que hipnótica. É um desses momentos que são definidores da experiência audiovisual - metonímicos, por assim dizer. O poder arbitrário que o cinema tem de acelerar, expandir ou apenas registrar o próprio tempo das ações aqui é explorado em todo seu potencial. Então, brincar e conectar diferentes temporalidades e cosmologias se torna parte do próprio devir místico cinematográfico, nos desafiando a acompanhar o que vemos na tela por uma perspectiva antirrealista. O final do filme segue a mesma toada ambiciosa, com direito a rajadas de tiros e golpes de violão, porém sem a mesma magia.


Talvez a música não tenha o poder de exorcizar tamanho mal, mas certamente pode resguardar a história e transmitir seu legado - mesmo depois do fim dos sonhos de liberdade. Quase tudo é difícil e injusto no universo de Pecadores, e ainda assim os personagens se recusam a perecer, nos convidando a compartilhar do mesmo vigor e êxtase. Então, a balada narrativa de Sammi - e do próprio Coogler - é feita para noites de festa, euforia e dança. A arte pode fazer com que nos sintamos um pouco mais vivos – mesmo que apenas por uma noite de confraternização ou uma sessão de filmes. Como antídoto à apatia e à desesperança que parecem inescapáveis, só os prazeres “diabólicos” da música (e do cinema).


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