Um Ator, Um Animal, Um "Homem com H"
- Felipe Duarte
- 8 de mai.
- 5 min de leitura
Atualizado: 9 de mai.

“Não estava atrás do feminino, eu queria ser um bicho"
Ney Matogrosso à Marie Claire
Um Ator
O sucesso das cinebiografias musicais (quase) sempre depende de um ator. A reencenação de uma vida real que se deu sob o holofote é uma tarefa hercúlea, que necessita de um intérprete já maduro e/ou consideravelmente potente. Ele será julgado por uma plateia munida com toda referência possível de comparação, ameaçado com a verossimilhança como à ponta de faca e corre o risco - mais que o usual do ator - de se disponibilizar para o ridículo. Claro, o sucesso do gênero da biopic não se ancora somente nas faces reencarnadas ao seu centro, mas muitas vezes as tomam como pedra fundamental.
Tendo isso em conta, Homem com H (2025), de Esmir Filho, é um filme que se ergue sobre bases inegavelmente sólidas, cortesia de Jesuíta Barbosa. Encarnando décadas da vida de Ney Matogrosso, enquanto rebelde e força criadora, Barbosa alcança o nível de performance que atrai aquela série de adjetivos hiperbólicos, usada tantas vezes a esmo que arrisca perder seu valor. “Brilhante”, “memorável”, “icônico” e quiçá até “mediúnico” seriam apropriados, sendo a última qualidade barrada somente pelo fato que o real Matogrosso permanece bem vivo, obrigado.
O cantor, como não poderia deixar de ser, está envolvido diretamente com o filme, em uma estratégia de consolidação da própria imagem que se afirma cada vez mais como tendência no cinema comercial. Não apetece aqui apontar Ney como mesquinho ou meramente publicitário, visto que há detalhes muito dolorosos de sua intimidade que são disponibilizados ao público em forma de uma bela ficção. Ainda assim, é inegável o sabor comum da biografia que não pode desfavorecer o dono dos direitos da imagem, recaindo no esperado do protagonista criativo e ousado, de personalidade por vezes ácida, mas sempre moralmente impávido em seus conflitos, que conquista público e família através da insistência em expressar sua arte.
Mas o brilhantismo de Jesuíta (e de seu diretor) está em concentrar seus esforços não em um mergulho que desnude a intimidade “real” ou as falhas de uma figura tão expansiva quanto Ney, mas em abraçar a ideia de um ícone, como conhecido pelo seu público, em todas as fases de sua vida. É esse ícone, por vezes disfarçado de homem comum, que é enviado para transitar nos espaços e momentos ao longo de “Homem Com H”, como se para descobrir como esses diferentes pedaços do mundo vão reagir àquela presença sublime. Barbosa a constrói com tanta voracidade que não só se escuda da faca da verossimilhança, mas ataca de volta com o olhar, com a voz e, no auge do seu belicismo, com seu corpo.

Um Animal
Em uma narrativa que consolida a ideia de um ícone da contracultura durante a ditadura militar, Esmir Filho opta por sacralizar o corpo. Ele filma o físico que Barbosa disponibiliza ao longa, teso e com tesão, para maximizar o impacto dos elementos que constituem o ator. Reforça-os com planos fechados, cortes rápidos e um momento de muito bem executada referência à cineasta Claire Denis, com corpos queers e militares filmados como no longa Bom Trabalho (1999). Os dentes separados, as veias pulsantes, os olhos que se abrem e os quadris que balançam nas canções e nas transas são tanto Ney Matogrosso quanto a ideia da persona que une a narrativa. A persona que não queria ser homem, mas bicho.
Não à toa, a primeira imagem de Ney ainda criança surge em meio às folhagens para abrir o filme, que retorna a elas em vários momentos, sejam eles ou não parte da diegese. Talvez seja este, de fato, o grande favor que Homem com H presta à imagem do artista real: reafirmar que suas intenções e referências, descomprometidas com as normas estéticas de seu tempo, não eram uma negação do masculino por si só, mas a busca afirmativa por uma transcendência que Matogrosso encontrou no animalesco.
Se nas fatias de vida mais doméstica, vemos a relação de Ney com os homens que o marcaram (destaques para Rômulo Braga como o pai do cantor e para Jullio Reis como um Cazuza revelatório), os trechos de estrelato exibem o arco dessa busca transcendental. Quando as canções afrouxam o regime da realidade, o ícone pode se revelar finalmente, embebido nos figurinos de astro. A progressão das vestimentas que (mal) revestem Jesuíta indicam as fases da busca e coroam a fera dentro do homem. Mas o trajeto de uma biografia musical não pode ser só crescente, e a estrela precisa cair para gerar real impacto. Quando o longa encontra e explora o auge maximalista da estética de Matogrosso, o bicho sob o holofote volta lentamente a ser pessoa.

Um “Homem Com H”
Quando Ney avança em sua estética, se liberando dos pelos e cobrindo sua nudez, o resto do mundo pode alcançar o corpo da besta sacra, agora tornado mortal. É nessa fase que a luxúria do corpo de Jesuíta, ainda que não expurgada, cede espaço para coexistir com o drama da crise da AIDS. É sabido que Ney Matogrosso perdeu dois grandes amores para o vírus do HIV: Cazuza e o Dr. Marco de Maria (aqui, Bruno Montaleone). O filme atrela, então, o potencial criativo do corpo sexual de Barbosa a um momento histórico marcado pelo luto.
O Homem-Matogrosso, que ama e chora, se reconcilia com seu pai e encontra alguma espécie de conforto numa domesticidade mais comum, cumpre o papel não só de ser observado, mas também de observar. Ele ilumina Cazuza em seu show derradeiro e lava o corpo adoentado de Marco. O filme, que quer reafirmar a memória de Ney no senso comum, acena para as lembranças que ele carrega.
Essa aproximação do mundo e distância da fera carregam ainda um esmero técnico e estético, mas lentamente demovem Jesuíta do espaço de voracidade por ele aberto com seu corpo e seus olhos no resto do filme. A calmaria do ator, conforme o drama fílmico se encerra, é esperada, mas Homem com H escolhe uma rota, talvez, extrema: estabelecidos o potencial estético, o fervor sexual, os amores vividos e perdidos, o filme abandona a ficção, e se encerra com um registro documental do verdadeiro Ney Matogrosso, em um show em 2024.
Matogrosso é um dos maiores artistas da história do Brasil, país que tem já uma relação de familiaridade e afeto com sua voz, rosto e corpo. Talvez, aos fãs mais fervorosos, o surgimento de sua pessoa verídica para encerrar o filme seja a única maneira possível de concluir essa homenagem. Mas a maioria do texto fílmico que perdura às duas horas anteriores busca a reconstrução e detalhamento do verniz que marcou o ícone e fera, ressaltando e decupando o mundo de uma maneira que a ficção faz muito melhor que um trecho tão curto da realidade.
Homem com H se encerra, enfim, como testemunho da grandeza de dois homens: Ney Matogrosso, tema da obra, e Jesuíta Barbosa, feitor ao centro do trabalho. A ausência de seu corpo é sentida no trecho final, talvez porque Ney se exibe para o mundo além da câmera, e Jesuíta se exibe para nós. O retrogosto tão pungente da performance, por mais que pese além do que a montagem consegue contornar, serve felizmente como extravagância de qualidades. Afinal, o longa é uma biografia musical muito bem executada, Ney Matogrosso é um artista com pouquíssimos pares e Jesuíta Barbosa, que sabe ser homem, animal e qualquer outra coisa no meio do caminho, é um belíssimo ator.
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