O filme mais aguardado do 33° Cine Ceará, Estranho Caminho (dir. Guto Parente), tem tido uma grande repercussão nacional e internacional, tendo vencido prêmios no renomado Tribeca Film Festival, nos Estados Unidos, e no Festival do Rio. Nada mais justo que uma exibição especial para o encerramento do festival cearense. Desde os tempos do coletivo Alumbramento, as produções de Guto têm uma inclinação experimental muito forte, com interessantíssimos flertes com o cinema de terror. Para citar exemplos recentes, O Clube dos Canibais (2018), um genuíno terror cearense, explora tudo que o cinema de gênero tem a oferecer, bem como o aclamado Inferninho (2018) – em que divide a direção com Pedro Diógenes — com guinadas para um experimentalismo underground.
Em Estranho Caminho não seria diferente. Apesar de sua linearidade como um todo, são justamente nos momentos em que se afasta do lógico e convencional que o filme ganha força, trazendo para a obra o terror de se viver em uma pandemia e propondo uma forma bastante livre de experimentação estética, sem esquecer da complexidade das relações humanas. O filme acompanha David, jovem cineasta cearense, residente em Portugal, que retorna a Fortaleza para a exibição de seu primeiro longa-metragem em um festival de cinema. Entretanto, é surpreendido pelo avanço da pandemia de Covid-19, ao mesmo tempo em que tenta se reconectar com seu pai, com quem não fala há muitos anos.
A princípio, o filme investe bastante nessa solidão do protagonista e, consequentemente, em seu isolamento. David é um personagem que, naquelas circunstâncias, está sozinho. É o único hóspede em sua pousada, torna-se incomunicável após ter o celular furtado e sofre com o doloroso distanciamento em relação ao progenitor. Tudo isso acaba sendo maximizado pelo contexto da pandemia, ao vermos as ruas e as praias de Fortaleza vazias, em belíssimas imagens que reverberam questões do interior do personagem. Porém, ele não está isolado apenas quando anda pela cidade, mas também em casa. Em certo momento do filme, David, sem ter para onde ir, acaba acolhido pelo pai, Geraldo, mesmo contra sua vontade. Na casa deste, ele é lembrado inúmeras vezes que não é bem-vindo ali; há uma barreira que impede a comunicação e afetividade entre os dois, e o convívio forçado em decorrência da pandemia só piora as coisas, gerando incontáveis atritos. Há, sim, abusividade por parte do pai e falta de comunicação entre ambos, mas assim são as relações familiares, complexas, contraditórias, imprevisíveis. Isso tudo dá profundidade na relação entre os dois, potencializando todos os acontecimentos do final do filme, além de inesperadamente provocar boas situações cômicas.
Nessa perspectiva, o longa tem em vista retratar a experiência de terror que foi viver a pandemia. Isso está contido em pequenas cenas cotidianas, que acabam intensificadas pela maneira de filmar do cineasta, fazendo com que absurdos convencionais acabem por gerar um estranhamento. Por exemplo, o momento em que Geraldo recebe o filho em casa pela primeira vez e submete o jovem a uma desinfecção por um curioso gás futurista, ou em momentos nos quais este mesmo passa mal, devido a indisposições de saúde, e tem que ser socorrido pelo filho. São pequenos horrores cotidianos que aquele tipo de situação acarretou a todos nós.
Aliado a isso, temos os momentos de maior experimentação, que flertam com o terror, fantástico e imaginário. Em muitos fragmentos, não sabemos se o que estamos vendo são memórias, sonhos, ou delírios da mente perturbada do protagonista — trata-se de um fluxo de consciência de David, em que vemos flashes de sua imaginação se misturando com o real. Com uma montagem inventiva, intercalando momentos de sobriedade da história com outros de devaneio absoluto do protagonista, fazendo também bom uso do recurso do zoom, que nos coloca dentro daquele delírio, a obra fica bem estilizada, ao mesmo tempo reforçando a confusão mental do personagem. A sensação é, ainda, fortalecida pela relação que o filme tem com a imagem analógica, pois se utiliza desse recurso imagético para reforçar essa ligação com o fantástico nos momentos mais "disnarrativos" e experimentais, tanto trazendo imagens que emulam a película nesses flashes de sonho, como no trecho do filme diegético gravado pelo próprio protagonista.
Estranho Caminho é um filme singular, que propõe um olhar original para a pandemia de Covid-19, com interessantíssima inclinação para o cinema de terror, mas que constrói um tocante drama familiar, sem deixar de lado as experimentações tão características de seu realizador.
por Matheus Caminha, crítico convidado, na cobertura do 33º Cine Ceará: Festival Ibero-Americano de Cinema.
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