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Imagens borradas: a memória estilhaçada em "Oh, Canada"

Foto: Divulgação/ California Filmes
Foto: Divulgação/ California Filmes

With glowing hearts we see thee rise,

The True North strong and free!

– Trecho do hino nacional canadense


No princípio, há a imagem de um corredor. Ele é escuro, mas a luz que incide sobre sua margem final deixa transparecer o recorte de um quadro – não conseguimos compreendê-lo em sua totalidade, mas é possível identificar a cena de uma paisagem aberta, com um rio, árvores e montanhas. Com uma canção belíssima que acompanha essa abertura, somos convidados pela câmera a acompanhar três indivíduos que adentram a sala de estar dessa casa – que mais parece uma espécie de salão –, à medida em que remodelam esse espaço: cadeiras são movidas, tapetes são guardados e uma série de equipamentos são montados no centro do lugar. Indivíduos, câmera e os mínimos detalhes estão preparados para Leonard Fife (Richard Gere/ Jacob Elordi) em uma produção documental sobre sua vida, montada a partir de questionamentos propostos por alunos universitários e outros admiradores do seu trabalho. Fife é um cineasta canadense-americano aposentado devido ao avanço de um câncer terminal. Ao descer as escadas, com o apoio de sua esposa Emma (Uma Thurman), e ao se posicionar diante da câmera, descobrimos que o seu propósito pessoal jamais foi responder às perguntas que lhe seriam colocadas. Afinal, possuía uma intenção que era apenas sua, mas que, segundo suas palavras, voltava-se à sua esposa, e portanto deveria ser acompanhada pela mesma. Iniciamos, então, um itinerário breve; um passeio pela memória, pelos desejos desse sujeito e, mais do que isso, pelo que ele concebe como uma verdade, ou não, sobre si.


É importante perceber que o longa trabalha, a priori, com uma forma que se autorreferencia. Não se trata, a rigor, de um documentário. No entanto, Paul Schrader brinca com as próprias formas desse gênero e mimetiza a relação idiossincrática que Leo Fife estabelece com o cinema. Por isso, podemos pensar o filme como uma espécie de jogo entre documentário e ficção, ou seja, entre os tensionamentos da imagem ficcional e o estilo documental da realidade. 

Foto: Divulgação/ California Filmes
Foto: Divulgação/ California Filmes

Num primeiro momento dessa entrevista, Leonard começa a rememorar uma cena na qual, às vésperas de tornar-se professor universitário em Vermont, recebe uma proposta de emprego quase irrecusável da família de sua então esposa. Tentado, tanto por sua relação com ela quanto com seus filhos, o homem torna a ponderar a ideia. Entretanto, ao deitar-se na cama com seu cônjuge, é o Leo Fife de Richard Gere que participa da cena e da discussão sobre o destino de sua família. Esta e outras cenas – como a de sua visita a Vermont, a da descoberta de suas amantes e a de sua ideia de fugir para Cuba – nos demonstra a existência de uma mise-en-scène fragmentada. Ao colocar em risco a linearidade e a confiabilidade de sua tessitura narrativa, assim como o gesto de fundir a substância do protagonista e confundí-lo em duas personas – a de Gere, mais velho, e a de Elordi, mais jovem –, passamos a nos questionar em que medida essa modulação técnica se faz de forma consciente. Com efeito, por mais que essa estratégia de pensar a fragmentação da cena como forma imbricada às idiossincrasias da mente e da memória do Fife em estado terminal sejam minimamente promissoras, criativas e inteligentes, algo continua suspenso. De fato, narrativas não precisam ser lineares para conquistar o espectador – na realidade, sequer precisam conquistá-los. O que se deseja, no fim das contas, é o despertar de um estado de catarse e emoção tão profundo com esse personagem que, no fim de sua vida, decide expôr a(s) verdade(s) de quem ele realmente era, de sua identidade ora oculta, de sua índole outrora outorgada, soturna.


É interessante como o longa brinca com a confusão causada no espectador, ao mesmo tempo em que a mesma torna-se, em determinado ponto do fluxo narrativo, exaustiva. Em uma das pausas que faz no processo de entrevista, Emma insiste aos documentaristas de que o que o seu marido está revelando nada mais é do que uma série de truques feitos por sua própria memória; que ela sabe e entende o que aconteceu efetivamente em sua vida, pois acompanhou há muito a sua trajetória – seja como cineasta, seja como ser humano. Leo, no entanto, torna claro o seu desejo em utilizar o fundo escuro e a luz que incide sobre o seu rosto como o seu último modo de revelar a realidade sobre a sua história. Posteriormente, a confusão narrativa se converte num gesto de identificação. Ela passa a servir tantos propósitos, sobretudo o de investigar a verdadeira identidade-subjetividade de Fife, como enxergava a si e compreender a linha tênue que o conduziu determinadas escolhas de sua vida, que o longa se perde em uma tentativa de originar uma forma concêntrica que mimetiza e, ao mesmo tempo, funde as formas do documentário e da ficção. Mesmo que não seja um dos papéis do cinema responder decisivamente a questionamentos colocados pelo espectador, é interessante refletir se esses mesmos questionamentos nos conduzem a algum lugar ou a algum novo plano, de um novo jeito.

Foto: Divulgação/ California Filmes
Foto: Divulgação/ California Filmes

Finalizando essas considerações, há algo que é promissor, porém sutil e minimamente desenvolvido. Há uma alegoria profunda ao Canadá desde o título à melodia que atravessa as cenas deste filme. Embora a alusão, no plano musical, diga respeito ao hino nacional canadense, a dinâmica do protagonista nos revela uma imagem bela: esse outro país, ora, essa outra terra, nada mais seria que uma rota de fuga, uma alternativa aos outros destinos e modos de existência que Fife deve seguir – segundo sua família, seu próprio país de origem e os preceitos trabalhistas. A cena que nos é revelada ao fim do longa-metragem mostra o jovem atravessando a borda canadense em direção a um campo verde e esplendidamente iluminado pelo pôr do sol. Entretanto, apesar de bela, essa imagem torce uma promessa figurada que, embora não seja vazia, torna-se fraca e solta. A busca da verdade, pelo seu eu verdadeiro – se é que o existe –, parece encontrar-se nesse norte para o qual atravessa, mas que só podemos observar de longe, atônitos e esperançosos por uma liberdade que, sabemos, não será existente. Longe de ser um filme vazio, Oh, Canada satisfaz-se em desejos e desafios promissores, mas falha em encarnar uma cena que emocione, profundamente, carne e espírito de seu espectador à maneira com que referencia a maneira com que compreende o fazer cinema, mesmo que consciente.


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