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"Desencanto": o efêmero e o perene


Foto: Reprodução
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Esse ano marca o octogésimo aniversário do drama romântico Brief Encounter, do lendário realizador David Lean. Celebrado como um dos grandes filmes britânicos de todos os tempos, o longa sempre aparece ranqueado nas mais diversas listas especializadas do campo cinematográfico – das Américas à Ásia. Na filmografia de Lean, o romance ilícito entre uma dona de casa e um médico precede os épicos que alçaram de vez o diretor ao panteão dos célebres autores. Em um exercício de imaginação, é como se partisse daquela estação qualquer, no noroeste da Inglaterra, o trem que transporta os japoneses e cai nas águas do Rio Kwai; aquele que leva o temido Strelnikov, revelando que outrora ele fora o idealista Pascha, marido de Lara; ou a locomotiva usada na armadilha contra os turcos, solidificando a figura de Lawrence como herói entre os árabes. Entre chegadas e partidas, Desencanto (Brief Encounter, no original) é ambientado em uma estação de trem, só que, em vez de heróis e revolucionários, os trilhos transportam pessoas comuns – dentre elas, Laura (Celia Johnson) e Alec (Trevor Howard), protagonistas do longa.


Estruturado como uma confissão, o drama segue a história de uma mulher atormentada pela culpa, fantasiando em revelar ao seu compreensivo marido o caso extraconjugal no qual ela esteve envolvida por algumas semanas. No mais prosaico dos cenários, o sofá de casa, Laura reconta toda a história de sua grande paixão proibida enquanto o marido, Fred (Cyril Raymond), resolve um caça-palavras. Ele procura por um vocábulo de sete letras em um verso de Keats, e ela o ajuda: a resposta é "romance". Mas, por hora, lembremos de outro verso do poeta inglês: “o toque tem uma memória.” Brief Encounter começa pelo fim – deixando clara a natureza condenada e efêmera do encontro entre os dois amantes. Vemos em detalhe (esse plano aparece no começo e no fim do filme) o leve toque que Alec dá no ombro de Laura ao se despedir da amada para sempre. É esse pequeno gesto que serve de gatilho para que a dona de casa rememore o caso em toda sua gentil violência.


Laura e Alec se encontram pela primeira vez na estação de trem. Enquanto ela espera na plataforma, um cisco entra no seu olho, e ele – um médico geral – a ajuda a retirar. É um encontro fortuito, obra do destino. A partir desse episódio, eles começam a se encontrar casualmente – vão ao cinema, ao café, almoçam juntos. Pensemos no filme como um épico dos pequenos gestos: um toque de mãos, uma risada, uma partícula de poeira no olho. O instante singelo que, no grande esquema das coisas, muda tudo. A exemplo do momento em que Laura percebe que está apaixonada por Alec. Na mesa do café da estação, eles esperam por seus respectivos trens enquanto ele explica, entusiasmadamente, sobre sua pesquisa no campo médico. Ela desconhece obviamente a terminologia, mas é seu rosto iluminado e olhar de encantamento que preenche a tela. Num átimo, algo aparentemente inofensivo, em retrospecto, acaba pontuando toda a força de um encontro.


Foto: Reprodução
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No entanto, Brief Encounter é um filme dividido entre dois impulsos: o de dar a ver a beleza fugidia dos pequenos gestos e o apego às tendências melodramáticas. A culpa dos protagonistas e o manejo de tais cenas é o que acaba por levar o filme para um território um tanto manipulativo/sentimentalista. À medida que o fim do relacionamento se aproxima, os discursos vão se tornando afetados e desconectados da sutileza com a qual a relação fora construída até ali. A autoconsciência de incorporar os excessos com ironia, como no título filme (Chamas da Paixão - nas palavras da protagonista, “um filme terrível”), que Laura e Alec assistem juntos, se perde momentaneamente. Apesar disso, narrativamente, o longa volta a encontrar o equilíbrio na natureza cândida de seus personagens. Laura e Alec reconhecem a efemeridade de seu romance e, mesmo resignados, decidem vivê-lo pelo tempo que durar. 


Também é interessante notar que esse dissenso se faz presente entre o conteúdo e algumas escolhas estilísticas do drama romântico. Se, por um lado, o longa ressalta textualmente a condição ordinária dos personagens e das situações por eles vividas; por outro, a fotografia de Robert Krasker pende para o expressionismo, em vez da transparência do naturalismo. Mais para o fim do filme, quando o casal perambula clandestinamente pelos túneis da estação, o que vemos são as sombras – a iluminação uniforme do começo do relacionamento é quase que totalmente abandonada. O mesmo pode ser notado na cena em que Laura percebe que nunca mais verá Alec e corre desesperada para os trilhos. A condução da sequência é dramática, transcorrendo como em um noir (a angulação da câmera, o jogo de sombra e luz, o barulho dos trens). Esse duro contraste simboliza a mudança no estado de espírito de Laura, porém, Brief Encounter também é produto de seu tempo e das ambições estéticas de Lean. Falar em desacordo não significa falar em dois sentidos necessariamente contraditórios - formalmente o longa nunca abre mão por completo da sutileza. O romance britânico faz um uso sensível das dissoluções, como se carregassem afetos e intimidades para outros espaços e temporalidades. “Nada dura, nem a felicidade, nem a aflição”, como dito pela própria Laura. No entanto, na memória, alguma coisa – por menor que pareça - sempre perdura, fala conosco e escapa para outros lugares.


Para falar naquilo que permanece, voltemos aos pequenos gestos então, pois acredito ser por eles que o filme tenha tamanha ressonância. Tais momentos podem ecoar mais de cinquenta depois, como no encontro fugaz, mas repleto de anseio, entre o jornalista Chow e a sua vizinha, sra. Chan – personagens de Amor à Flor da Pele, de Wong Kar-Wai. A batalha interna entre o senso de moralidade e o desejo, além da eletricidade desses instantes, traduzida em toques sutis protegidos sob as sombras da noite, muito lembram o drama britânico. Podemos falar de referências mais diretas – homenagens, por que não? Setenta anos depois, um toque no ombro também é o que faz Therese rememorar sua história com Carol, no drama dirigido por Todd Haynes. O fato é que é notável que uma unidade mínima dentro de um filme, tal qual um plano, possa carregar tanto significado.


Sem partir para nenhum tipo de apreciação tardia, pois o longa de Lean já alcançou considerável sucesso no seu lançamento. Se a força dos épicos está na grandiloquência, a de filmes como Brief Encounter (com todos os seus conflitos e sinuosidade) se encontra, parcialmente, na valorização ao diminuto, ao efêmero. No que é aparentemente singelo, mas não menos marcante do que as narrativas epopeicas. São os momentos ínfimos, aqueles que parecem escapar por entre os dedos (como uma dissolução ou um simples plano), que ganham novos significados a cada retorno e fazem com que a obra sobreviva ao teste do tempo, mobilizando o interesse de espectadores e de outros realizadores oitenta anos depois.


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