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O ritmo errante de “Flow”

Foto do escritor: Nathalie AlmeidaNathalie Almeida

Foto: Divulgação/ Mares Filmes
Foto: Divulgação/ Mares Filmes

Pensemos primeiro no título do filme: “Flow”. Em tradução livre do inglês, flow significa fluxo – um movimento contínuo e sem esforço em direção a algo ou algum lugar. É um feito notável que uma única palavra dê conta de sintetizar tão bem a natureza de um filme, especialmente um que não contenha falas e não se apoie nos códigos e signos convencionais da linguagem humana. Flow é, sob todos os aspectos, uma jornada, um passeio pelas aventuras e desventuras de um grupo de animais que, por motivos de força maior, devem se unir e trabalhar juntos na superação de obstáculos, ao passo que lidam com as nuances das delicadas dinâmicas interespécies.


Para dar início a viagem, somos apresentados ao protagonista da narrativa, o Gato, e aos seus improváveis companheiros: Capivara, Lêmure, Cachorro e Pássaro. Em decorrência de uma enchente de proporções bíblicas, os animais literalmente se encontram à deriva em uma antiga cidade submersa. O Gato precisará se desfazer dos traços de domesticidade e aprender a trabalhar em cooperação com os demais, visando sua sobrevivência e o bem-estar coletivo. À primeira vista, contado assim, o enredo soa como uma fábula propícia a correlações humanas – e, em mãos menos habilidosas, talvez de fato enveredasse por tal caminho. Mas Gints Zilbalodis e sua pequena equipe de colaboradores encontraram recursos sofisticados na condução do longa animado.


A escolha pela total ausência de falas afasta os animais de características inerentemente humanas. Para a maioria das vocalizações, o longa lituano fez uso de gravações dos sons reais da fauna, a exemplo de outras animações contemporâneas, como Robô Selvagem (2024, dir. Chris Sanders) e WALL-E (2008, dir. Andrew Stanton), de maneira a fortalecer a veia naturalista do filme. As interações entre a música e os demais sons da malha sonora contribuem para a harmonia e o ritmo das cenas. A trilha original, em especial – composta em parceria por Rihards Zalupe e pelo próprio Zilbalodis – se mostra de grande força expressiva, adiantando muitas das batidas dramáticas da aventura animada. No entanto, o conjunto de semelhanças entre o longa europeu e as animações de grandes estúdios estadunidenses é limitado, pois Flow opera em um regime narrativo e de produção distinto. Animado em um software gratuito de código aberto, o filme de Zilbalodis não segue necessariamente uma estrutura narrativa clássica de causalidade. Em um esforço de abandono deliberado, há espaço para o que simplesmente advém da natureza, mesmo que tais “incidentes” tenham sido meticulosamente talhados com o auxílio de ferramentas 3D.


À medida que o grupo de animais continua navegando por territórios desconhecidos, a câmera acompanha com fluidez a cadência do barco – o balanço é lento, justificadamente hesitante. São muitas as sequências longas e os movimentos de câmera imersivos, de modo que o aparelho quase sempre se encontra posicionado nesse sentido. Em trechos lindamente ilustrados, acompanhamos o passo a passo do Gato aprendendo a se alimentar sozinho – sempre por tentativa e erro. A preocupação em demarcar o tempo interior das ações em sua integridade fica clara. Flow se interessa mais pelos processos do que necessariamente pelos resultados, tanto do ponto de vista da diegese quanto como obra cinematográfica. As sequências de pesca/caça, bem como as de altercação física entre os animais, são filmadas por uma perspectiva tão naturalista que remetem aos programas documentais sobre História Natural encabeçados por David Attenborough – o primor na mimese dos movimentos é particularmente impressionante.


Foto: Divulgação/ Mares Filmes
Foto: Divulgação/ Mares Filmes

Flow preserva o caráter indômito da natureza sem cair na armadilha dos clichês referentes à antropomorfização, que tão comumente atravessam as animações protagonizadas por personagens não humanos. Com toda a dureza própria à força da natureza e os imanes eventos a ela ligados, a aventura lituana não abandona seus traços de ternura e magia. Zilbalodis trabalha a construção das relações de seus personagens com a mesma parcimônia e fluidez dedicadas aos demais elementos do filme. Então, como se comunicar com seres de diferentes espécies? É naturalmente uma grande fonte de frustração (e drama) para um grupo tão diverso. O caminho se mostra árduo, e os animais têm dificuldade, mas, com esforço, caminham para uma solução – trabalham em conjunto, aprendem os gestos uns dos outros. Os olhos do Gato e de seus companheiros comunicam e brilham tanto quanto é possível fazer com que olhos desenhados brilhem. Como levantado por Donna Haraway em Quando as Espécies Se Encontram: “Os animais se engajam responsivamente nos olhares uns dos outros.” Muito embora o conhecimento acerca das interações dialógicas entre animais e humanos ainda seja bastante incipiente, no longa de Zilbalodis o ato de olhar fala com os espectadores e intercepta o próprio olhar humano. De todo modo, os personagens de Flow são produtos da atmosfera naturalista do filme e, entre equilíbrios contrários, também são sujeitos de possibilidades extranaturais – muito graças ao poder que a animação, enquanto meio, tem de materializar quase qualquer cenário imaginado.


Ao fim da odisseia, o grupo liderado pelo Gato se encontra combalido, porém mais unido do que jamais visto até ali. A despeito de tantas diferenças, as intempéries enfrentadas juntos fortaleceram significativamente os laços que modelaram a viagem dos personagens e o filme como um todo. O próximo destino é incerto, mas talvez seja justamente nesse sentimento de errância que se encontre a força de Flow – na jornada, no vislumbre, na disposição para descobrir.


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