top of page

Carajumos e Suas Ausências: "A Sombra do Meu Pai"

Foto: Divulgação/ The Match Factory
Foto: Divulgação/ The Match Factory

Estudei por boa parte da minha infância num colégio católico tradicional daqui de Recife. O espaço era imenso, com quadras, piscinas, ginásios e parquinhos tão grandes que hoje em dia são separados, vendidos e destruídos para serem postos prédios em seus lugares. A simbiose recifense típica entre a indústria imobiliária e o apagamento de memória. De qualquer forma, se em uma piscina cabe um condomínio inteiro, para os olhos de uma criança nela caberia todo um oceano. Me sentia assim na escola: a esmo como se os corredores e prédios fossem uma cidade inteira, desconhecida, mas gradativamente explorada pelas perninhas que corriam mais do que meus pulmões asmáticos poderiam aguentar. Brincando nos jardins, um dia encontrei um caramujo, pequeno até mesmo para tamanhos molusculares. Por achar que ele estava sozinho e triste, talvez pelo bicho não se mexer muito, lembro de colocá-lo numa caixinha de fósforo, trazê-lo para casa e soltá-lo na samambaia que ficava na varanda do apartamento, num jarro provavelmente muito menor do que o ideal.


Evidentemente, eu não sabia que caramujos transmitiam doenças, que destruíam vegetações ou que se reproduziam que nem praga. É claro, igualmente, que de alguma forma descobri essa informação no dia seguinte. Quando cheguei ao prédio, subi no elevador e corri para minha porta, direto para a varanda. Busquei com uma pazinha pelo meu caracol sequestrado. Não o encontrei em lugar algum. Seu fim, se na tragédia da morte solitária ou na liberdade da destruição de uma inocente samambaia, pouco importa para este texto. O que importa é que, na mente de um Matheus de cerca de 8 anos, pelos próximos meses (ou, se temporalmente preciso, pela próxima semana), só havia espaço para o pavor de um exército de caramujos infestando a minha casa: meus velhos hamsters mordendo os invasores, lesmas subindo nas camas enquanto dormíamos e conchas gosmentas dentro dos nossos pratos e copos. O tempo se moldou ao medo e culpa de uma criança, se estendendo mais do que deveria. Em tempos, acelerando naquilo com que eu não queria lidar.


Lembrei desse episódio algumas vezes no começo da exibição de My Father’s Shadow (dir. Akinola Davies Jr., 2025), quando os dois irmãos protagonistas, Akin e Remi, também crianças, se alimentam e a imagem apresentada na tela pendula entre seus pratos e os insetos que observavam: formigas e minhocas que, em seu turno, também devoram umas às outras. A nutrição é apresentada ao lado da morte e da decomposição, indissociando, então, o crescer do sofrer. Nos primeiros minutos, a disputa entre a esperança por um futuro melhor e a violência do presente é apresentada com os pés e os olhos na terra — e se repete, em outras configurações, por todos os cenários encontrados pelos irmãos.


O filme, primeiro longa de Akinola Davies — que o co-escreveu com seu irmão, Wale Davies —, bebe, como o início do texto, de uma experiência pessoal, flertando com a autobiografia. Exibido como parte da programação do XVI Janela Internacional de Cinema, em Recife, cabe também apontar o inspirado pareamento da obra com o curta O Mapa Onde Estão Meus Pés (dir. Luciano Pedro Jr., 2025), exibido no início da sessão. Também marca a primeira vez em que uma produção de longa-metragem nigeriano foi selecionada para o Festival de Cannes, na França. Para além de demonstrar a força de sua repercussão, esses são exemplos de como as imagens elegantes e a narrativa imersiva de My Father’s Shadow mergulham sua audiência no drama familiar, sem perder de vista a perspectiva central das crianças.


Foto: Divulgação/ The Match Factory
Foto: Divulgação/ The Match Factory

O aspecto semi autobiográfico surge quando o diretor pincela, entre as cenas de afeto, curiosidade e assombro, sua relação com a paternidade (ou o afastamento dela) e a imagem de uma Nigéria de 1993, cenário de crise política e militar, sem que seja afastado o calor, o lúdico e a beleza do país. Situada numa zona rural e depois movida para as ruas coloridas de Lagos, a história tem seu cerne na relação entre as crianças e seu pai, Folarin, ternamente interpretado por Ṣọpẹ́ Dìrísù. Juntos, vão até a capital coletar os salários atrasados do homem antes que seja revelado o resultado da primeira eleição presidencial após dez anos de governo militar — o que causaria, como descobrimos que causa, o caos nas ruas da cidade.


É pelos olhos de Akin e Remi que entendemos as dinâmicas ao seu redor e, por isso, a câmera de Davies está menos interessada no contexto político-social do país africano e mais interessada na construção da figura do pai, misteriosa até para as crianças. Fola trabalha em Lagos há muito tempo, o que impossibilita sua presença na vida dos filhos, e sua visita inesperada ao vilarejo da família mostra que a distância que separa prole e genitor é mais que física. Quando se vê diante dos olhos igualmente curiosos e admirados dos meninos, decide num impulso carregar os dois consigo em sua jornada para Lagos. Davies constrói, com planos que mostram em detalhes os pés, mãos, e rosto do homem, a busca dos irmãos por essa masculinidade e intimidade paterna às quais nunca tiveram acesso. É uma investigação do corpo como a de quem se olha num espelho, buscando se encontrar em cada gesto e fala.


Toda a estrutura narrativa pode ser percebida a partir de um mesmo princípio formal e temático: em My Father’s Shadow, prevalece a costura imagética da ausência.. O encanto de Akin com o pai só funciona pela vacância da figura de paternidade até então. Em determinado momento, o menino iguala a figura do pai à de um deus que ama, mesmo que distante: o enxerga como uma divindade, absolutamente todo-poderoso e igualmente inacessível. Em paralelo, o próprio homem reencontra, nas ruas de Lagos, amigos e parentes que não vê há muito tempo, como se o personagem de Dìrísù, mesmo no fervor do centro urbano nigeriano, não tivesse acesso a outro alguém além de si. São momentos que, apesar de mais sutis na demonstração, também indicam uma solidão e distanciamento afetivo entre os personagens que perturbam os protagonistas. A cada sorriso e abraço oferecidos a um rosto conhecido, Folarin descobre o quanto perdeu das vidas que o cercam: o nascimento de gêmeos, a morte de um sobrinho, a queda em dívidas, etc. A perspectiva da ausência do pai apenas pelo olhar infantil é invertida, mesmo que momentaneamente, para enxergarmos que, para o homem, há também um vazio irreparável.


Por outro lado, ao imaginar o afeto também como motor narrativo, é perceptível a proposta arqueológica do filme, de buscar em Fola respostas para as lacunas geradas pela falta de uma figura paterna. Com o encerramento do longa sendo acompanhado pela fala do menino, prometendo encontrar o pai nos seus sonhos, o fazer fílmico se torna, em si, o desejo de seu protagonista: encontrar na arte, na ficção, algo tão verdadeiro e universal que seja capaz de imaginar ou, em melhor uso verbal, sonhar com aquilo que não se teve. Davies então encontra, para Akin, Remi, ele mesmo, seu irmão e tantos outros, um caminho de cura. A projeção pode significar para os irmãos uma eterna busca por Fola e por si — um gesto que ecoa em Aftersun (dir. Charlotte Wells, 2022), especialmente nas passagens em que sua protagonista tenta reencontrar o pai nas fitas antigas de uma infância que já não existe. Cada frame da película se transforma num portal para uma realidade desejada. Num sonho.


Ao sair da sessão, reproduzindo em loop as chocantes e encantadoras cenas finais na minha mente, me peguei pensando sobre uma decisão específica tomada pelos irmãos Davies, no desfecho do roteiro: a de, apesar do disparo subentendido, a arma que mata Folarin não ser acionada. É comum escutar, como roteirista, dramaturgo, ou enxerido na arte da escrita, sobre o princípio narrativo da “arma de Tchekhov”. Quando um elemento é destacado no ato de contar uma história, ele deve ser utilizado ou ter uma consequência posterior — ilustrativamente, se uma arma é posta em cena, ela deve ser disparada. Em My Father’s Shadow, a falta de um tiro para o fuzil dos militares não soa como deslize. A escolha dos roteiristas de omitir o momento, assim como suas consequências iniciais, mais se assemelha a uma submersão no onírico. Na representação da dor, dessa vez, com a presença, agora indevida, de Dìrísù.


Wale e Akinola Davies amarram a jornada de Akin e Remi trazendo os temas que já tinham sido apresentados no início do longa, enquanto os meninos, inocentes, estudavam a vida (e a morte) de insetos. Que, ao fim, tudo se torna alimento, mesmo na decomposição. Que existe tanto esperança quanto violência. Nos irmãos, é colocada a força de uma juventude capaz de mudar aquilo que seus pais não puderam. Tornam-se responsáveis um pelo outro, para encontrarem a união como forma de resistência. Há um fascínio com o minúsculo, com o detalhe, quando também se é pequeno. Entre formigas ou caramujos, ondas do mar ou vasos de samambaia, My Father’s Shadow é, ainda, um ode às memórias de uma infância passada, perdida ou apenas imaginada, feita eterna nos sonhos.

Comentários


bottom of page