Entre o Artista e a Inspiração, "Lispectorante"
- Montez
- 7 de mai.
- 3 min de leitura

O ponto de partida do artista é quase sempre uma escuta atenta do mundo ao redor, na busca por captar, através da arte, aquilo que muitas vezes escapa à linguagem direta. Inspirado por vivências pessoais, referências culturais, afetos ou tensões sociais, o artista atua como um mediador entre o que é vivido e o que pode ser representado. A inspiração, nesse contexto, não surge como um momento mágico, como se as musas da mitologia grega assumissem o corpo do criador ou criadora, mas como um processo contínuo de observação e elaboração. É na fricção entre o íntimo e o coletivo, entre o que se vê e o que se imagina, que o gesto artístico se firma. Esse gesto, ao mesmo tempo intuitivo e consciente, dialoga inevitavelmente com os imaginários já existentes, seja para reafirmá-los ou subvertê-los. Toda criação se dá em resposta a um repertório visual e simbólico que a precede, e é justamente nesse embate que se abrem possibilidades de narrativas que reconfiguram sentidos.
Em um outro texto crítico, sobre o filme Serra das Almas (2025, dir. Lírio Ferreira), uma das âncoras discursivas utilizadas foi a ideia de como lidar com uma ideia de cinema pernambucano que já está diretamente ligada a um imaginário muito específico, desde seus arquétipos à construção narrativa. Se a idealização do sertanejo passa por filmes como Baile Perfumado (1996, dir. Lírio Ferreira e Paulo Caldas) e Bacurau (2019, dir. Kleber Mendonça Filho), uma trama que leva suas lentes à cidade do Recife, parece beber tanto de Amarelo Manga (2002, dir. Cláudio Assis) quanto de Aquarius (2016, dir. Kleber Mendonça Filho). De alguma forma, foram esses longas-metragens que solidificaram a imagética de um cinema estadual – importante destacar que não é regional, ponto que, por si só, já gera uma longa discussão – e, por consequência, imprimem uma noção de imagens a serem construídas.
Quando Lispectorante, novo filme da cineasta Renata Pinheiro, parte de um olhar para o centro do Recife, ela não o observa como um ponto turístico, mas como um espaço afetivo para a construção da história de sua protagonista Glória Hartman, vivida pela sempre brilhante Marcélia Cartaxo. O filme acompanha essa mulher madura que atravessa uma crise existencial e financeira. Por meio de uma fenda nas ruínas onde morou a escritora Clarice Lispector na cidade do Recife, Glória começa a ver cenas fantásticas, que parecem abrir margem para uma mudança em sua vida. A imagem do Recife como lugar de permanência simbólica de uma das maiores escritoras da literatura brasileira é uma fonte inesgotável de possibilidades narrativas e afetivas. Com uma escrita de precisão quase cortante, ora poética, ora enigmática, Clarice ainda atravessa os pensamentos de seus leitores como quem acende uma luz em territórios ainda não explorados.

Renata Pinheiro toma em suas próprias mãos a atitude de entrar no imaginário de uma artista que a influencia, assim como acontece com sua protagonista. A cineasta mergulha nas possibilidades de como fomentar a criação e a inspiração a partir da ideia de uma mente enquanto terreno inabitado. Nesse espaço suspenso entre o real e o fabulado, o filme se coloca a pensar sobre o tempo, o fazer da arte, o partir de um buraco de terra e construir, sobre ele, sentimentos e vivências. Veja: não há problema algum em um filme se estruturar a partir de uma lógica do afeto – pelo contrário, a ideia de uma imagem afetiva é algo amplamente discutido pela teoria do cinema. Melodramas, por exemplo, são essencialmente construções em cima do pathos. O problema surge quando esse afeto não encontra matéria, quando o gesto de construção gira em torno de imagens e palavras que evocam poesia, mas não a alcançam. No filme, por vezes, o texto parece esconder-se diante da ideia.
A sensação é de estar diante menos de um discurso estético e mais de uma hesitação, como se o filme quisesse se aproximar do universo de Clarice ou daquilo que inspira a cineasta e sua equipe, mas não soubesse exatamente como o habitar. E, nesse aparente vácuo, a repetição surge não como insistência produtiva, mas como uma tentativa de preencher o que não se sustenta por si. Assim, Lispectorante revela-se através de um dilema que não é raro na arte cinematográfica: o momento em que a inspiração se impõe mais como necessidade que como ímpeto. Quando o artista tenta se aproximar de um imaginário que admira, mas não o atravessa com a mesma força que a ideia, corre o risco de produzir um rascunho de intenções. A inspiração, sem enfrentamento, não atinge seu ápice e a arte, em vez de revelar o mundo, passa a somente observá-lo, com cautela, à distância.
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