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Pasolini/Salò

Foto do escritor: Fernando FigueiredoFernando Figueiredo
Foto: Reprodução
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Salò ou os 120 Dias de Sodoma, uma das obras mais controversas da história do cinema, completa 50 anos em 2025. O filme, inspirado no livro homônimo escrito em 1785 por Marquês de Sade, enfrentou uma onda de retaliações, censuras e proibições de todo tipo, devido ao seu conteúdo explicitamente perturbador, que expõe o lado mais perverso da condição humana e a degradação moral da sociedade moderna. No fim da Segunda Guerra Mundial, no fictício estado-fantoche da Repubblica de Salò, um grupo de jovens é submetido a 120 dias de humilhações, torturas físicas, sexuais e psicológicas, sob o domínio de quatro homens da alta classe.


Comumente, Salò é relacionado a regimes atuais, particularmente os de tendência neofascistas. No entanto, essa elementar interpretação, que recai no simplismo de um interesse temático, parece ignorar o pensamento estético de Pasolini. Como bem argumentou Serge Daney, “Salò não é o fascismo triunfante, aquele que se sustenta pela adesão das massas, de um delírio da conquista e da norma. É, sobretudo, sob a proteção das metralhadoras, o espaço fechado (nisso, sadiano) de um excesso ridículo de regulamentação, uma loucura da encenação. Nesse filme, como em todos os outros de Pasolini, ele não se interessa realmente pela questão da adesão das massas a qualquer coisa (e nem especialmente ao fascismo).” No universo político de Pasolini impera um sistema desprovido de justiça, profano, caótico e desordenado, inserido em uma construção fílmica rigorosamente orquestrada e organizada.

Foto: Divulgação
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A composição dos elementos dentro da mansão claustrofóbica reflete essa ordem esquemática: quatro senhores representam quatro diferentes poderes – o eclesiástico (Monsignore), o nobre (Il Duca), o judiciário (Eccellenza) e o econômico (Il Presidente); quatro narradoras relatam os contos sádicos; são quatro, as categorias de subservientes – as vítimas, os soldados, os colaboradores e os criados; por fim, o próprio filme é dividido em quatro partes: Anteinferno, Círculo das Manias, Círculo da Merda e Círculo do Sangue.


Pasolini, em algumas reflexões sobre a linguagem cinematográfica, defendia a ideia de que a técnica audiovisual é “substancialmente um plano-sequência infinito”, uma reprodução contínua da realidade e, por consequência, do presente. A partir do momento em que há alguma intervenção da montagem, o presente se torna passado. Diferentemente de La sequenza del fiore di carta (1969), em que o cineasta tenta colocar sua teoria na prática, em Salò, ele opta por trabalhar com uma decomposição dos planos, criando uma estrutura circular e repetitiva. Em um movimento de “vai e vêm”, as narradoras relatam aos participantes suas histórias grotescas na “Sala das Orgias” e, em seguida, os jovens se dirigem a grande sala branca (geometricamente enquadrada e iluminada por uma luz fria), onde irão executar os sadismos que ouviram anteriormente. Nesses mesmos salões - decorados com obras de arte, flores e espelhos - estátuas de anjos, de forma irônica e simbólica, testemunham as libertinagens.

Foto: Divulgação
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Em Salò, as vítimas são destinadas ao prazer dos tiranos e seus corpos são “subordinados aos progressos de uma demonstração” (Gilles Deleuze). Para isso, é preciso teorizar o discurso de dominação, e colocá-lo em prática por meio de uma violência premeditada. “Nós fascistas somos os verdadeiros anarquistas. Naturalmente, uma vez que nos tornamos mestres do estado, a verdadeira anarquia vem do poder.”, diz o personagem de Paolo Bonacelli. Não à toa, Pasolini filma frontalmente os atos de crueldade. Dentro daquele espaço fechado, nada é obsceno (fora de cena). Tudo é permitido na mise-en-scène, ou seja, encenado e registrado pela câmera.


Nas últimas sequências, os senhores, munidos com binóculos e assumindo uma posição voyeurística, gozam de seu poder ao observarem os estupros, as torturas e as mortes dos desobedientes, em um derradeiro exercício de controle. Mas há a cena final, na qual o clímax de horror é sucedido por um gesto singelo de amor: dois soldados abaixam seus rifles e começam a dançar.


Pasolini é um provocador. Um artista capaz de nos confrontar com nossos próprios horrores. Apesar de seu legado polêmico, o filme resiste ao tempo como um marco incontornável da sétima arte. Salò ou os 120 Dias de Sodoma continua ecoando como um postulado estético e cultural de sua época, cinco décadas após sua produção.

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