
Na prática da crítica, é comum que a velha antítese entre “forma” e “conteúdo” se torne uma âncora para argumentar acerca de um filme. Ainda que ambas as características sejam indiscerníveis, a separação ocorre de forma automática. Se se comenta sobre o estilo, logo põe-se como outro lado da moeda o conceito, e vice-versa. Há quem valorize um irrestritamente, há quem tome o outro como o centro de gravidade, atribuindo-lhe a importância de valorização de determinada pauta, apesar de sua “decoração” – que é como o estilo frequentemente é observado. Logo, quando um cineasta surge com um estilo intrincado e que chama atenção – por que não chamar de “impecável” ou “maravilhoso”? – os elogios que lhe são dirigidos acabam sendo amplamente celebrados.
O estilo sempre existiu e sempre estará diretamente ligado à obra de arte; ele faz parte da vontade do artista, do desejo de se criar algo a partir do seu momento histórico e da sua absorção. Contudo, é importante não confundir “estilo” com “estilização”: mesma raiz, definições dicotômicas. O segundo está presente numa obra de arte quando quem a produz desenha uma fronteira bem definida entre a forma e o conteúdo. Ou seja, não é mais a “vontade” que faz parte da produção e sua “intencionalidade”. O que uma estilização traz consigo é uma obra que, se não parece dissociada de si mesmo, torna-se repetitiva dentro de si e do próprio volume de quem a produz. Tal questão surge como um problema quando colocamos essas obras no contemporâneo e como uma sociedade pautada na visualidade e na estética passa a achar satisfatório os produtos estilizados.
Essa longa introdução deve-se a uma tentativa de embasar algumas das questões que surgiram durante a metragem de Nosferatu (2024), quarto longa-metragem de Robert Eggers, um dos nomes mais importantes do terror contemporâneo ao lado de Ari Aster e Jordan Peele. Inspirado no clássico de Bram Stoker, Drácula, e no clássico filme de F. W. Murnau de mesmo título do atual, Eggers toma para si esse conto gótico sobre a obsessão de um vampiro por uma mulher assombrada. Nas próximas duas horas, o espectador é imerso em uma intrincada tapeçaria de imagens sombrias, que evocam um desconforto crescente, à medida que as sombras sugerem as infinitas possibilidades do que poderia nelas se materializar.

No entanto, com o tempo, essa atmosfera de inquietação se desvela como um mero acessório, uma cortina que se agita suavemente ao vento, mas que, gradualmente, vai perdendo sua capacidade de incutir qualquer temor, tornando-se uma presença efêmera e desprovida de ameaça. E, já que estamos falando em estilo – e, por consequência, do uso de metáforas –, permitam-me alongar um pouco a feita na frase anterior: a imagem da cortina comunica-se com uma citação de Walt Whitman, na qual “Ele diz à sua arte, eu não serei intrometido, em meus escritos não permitirei nenhuma elegância, efeito ou originalidade pendurados entre eu e o resto como cortinas. Não permitirei nada pendurado no meio, nem a mais rica cortina.”.
Como já esclarecido por Susan Sontag, essa metáfora coloca o estilo como um adereço, um penduricalho, algo cuja quantidade interfere diretamente no que está sendo produzido. Ora, como qualquer autor cinematográfico, Eggers – tal qual Werner Herzog em sua bela versão da mesma história – deseja imprimir em imagens os sentimentos e sensações provocados tanto pela leitura do livro de Stoker quanto pela obra de Murnau. O cineasta deseja incutir dentro de sua imagem a atmosfera e, para tanto, ele conta com ajuda de Jarin Blaschke, seu diretor de fotografia. Todavia, essa forma enfática de dar conta da sua obra como um fenômeno estético provoca a feitura de um filme cuja cortina da imagem é tão espessa que se torna opaca.

Dentro da narrativa, as sequências de construção do temor estão associadas a dois pontos: as câmeras que se aproximam dos rostos enquanto a trilha sonora segue em uma crescente, para logo ser cortada por uma imagem que, se não clara em relação à anterior, transferida a um espaço vazio e silencioso. Isso não ocorre numa quantidade razoável para soar dissonante. Tal característica se repete substancialmente ao longo de mais de duas horas, tornando-se previsível e/ou cansativa. Esse tratamento não é uma novidade: em todos os seus filmes, essas características se sobressaem ora como assinatura, ora como “estilo”.
Em Nosferatu, essa densidade está mais marcada e, por consequência, mais imóvel. É então que a estilização (ou intencionalidade) irrompe. Quando a intenção passa a ser a máscara para a vontade, o produto final se torna mais rígido. Todas as decisões de estilo, então, concentram sua atenção em certa visualidade, reduzindo o olhar para o que não é adereço. Não existe um fôlego dentro da própria diegese e, quando se põe o filme ao lado dos outros de Eggers (tomo O Farol aqui como exemplo central), percebe-se o caminho da repetição: ou seja, o estilo se torna estilização. Ainda que Nosferatu consiga escapar de algumas armadilhas e chegar a seu clímax com uma das imagens mais bonitas do cinema em 2024, é importante pontuar essa característica que não permite o distensionamento do filme. Quando não conseguimos perceber a repetição como espectadores, a obra tende a se tornar vaga, esfumaçada e, em última instância, menos eficaz. A ver.
Comments