
“É o meu Brasil, é o meu Brasil, é o meu Brasil!”, vibrou adoravelmente uma senhora (cuja voz você talvez conheça e consiga imaginar) em uma curta entrevista viral, que ilustrava a reação de brasileiros à vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro. O êxito da representante nacional por cima de nomes condecorados do cinema americano – 4 das 5 concorrentes já ganhadoras do Oscar – foi inesperado e extasiante. Para os gringos, sinalizou o nome de Torres e de seu filme, Ainda Estou Aqui, como algo em que valia a pena prestar atenção. Para alguns de nós, conterrâneos do longa e de sua história, despertou outras sensações. Empresto novamente as palavras da senhora: “[...] Eu achei que ali eu estava, era pra mim aquele troféu. Era pra todos os artistas, eu achei assim, que era nosso”.
Cativante por parecer ingênua, ela articula com simplicidade a dinâmica de identificação que está na base do amplo apoio pelo longa de Walter Salles, que se intensificou ainda mais quando conquistou 3 indicações ao Oscar, incluindo uma muito surpreendente na categoria de Melhor Filme. Nas semanas que antecederam a cerimônia, a paixão pelo filme se desdobrou em várias facetas: a internet brasileira foi tomada por memes de Torres e os cinemas preenchidos por audiências curiosas com o drama biográfico de Eunice Paiva, revisitando uma das dolorosas histórias dos Anos de Chumbo e popularizando a memória de sua truculência. Simbolicamente, aproveitando o interesse público na história, o STF decidiu dar repercussão geral aos recursos até hoje barrados pela infame Lei da Anistia, refletindo a temática do filme em um gesto político material.
Esse onda formou crista na derradeira noite do Oscar, quando o país do Carnaval reservou parte de sua atenção para o norte da linha do Equador, e suspendeu a celebração por alguns eternos segundos até que a atriz Penélope Cruz rompesse o silêncio ao pronunciar “I’m Still Here” com sotaque hispânico e nos arrematasse novamente à folia. O homenzinho dourado pousou nas mãos de Salles com o impacto de um gol de Copa, e foi recebido com um grito uníssono correspondente, em um fervor coletivo da torcida que não pode ser novidade alguma para qualquer brasileiro que se preze. Em um país apaixonado pela força das próprias paixões, ele se manifesta quase que semanalmente nos campeonatos de futebol, sazonalmente ao fim de cada novela das 21h que obtenha relativo sucesso e sempre que algum artista internacional pisa em solo pátrio para realizar seu show em algum festival super faturado.

Mas mesmo sendo a torcida fanática uma prática disseminada no nosso país, ainda surpreendeu encontrar a cinebiografia de Eunice Paiva no centro desse fenômeno, principalmente por ser um filme nacional. A mobilização do afeto em torno de um longa brasileiro é, infelizmente, ainda uma raridade. O cinema feito no país tem um público fiel muito diminuto quando comparado aos números que contribuem para o sucesso de franquias bilionárias vindas do outro hemisfério, e assistir o acolhimento de Ainda Estou Aqui consagrou a trajetória do filme como algo fora da curva. Essa percepção, no entanto, não foi vista com bons olhos por todos.
Foi notável, em paralelo à recepção acalorada do filme, uma retórica ácida contra a mobilização, proveniente de alguns grupos da cinefilia. O fervo que se construiu antes da cerimônia foi por eles encontrando com reprovação, por tratar o filme como um conteúdo pop comercial, estimulando uma defesa quase cega da obra frente a qualquer crítica e um ímpeto de adoração que dificultava a análise do próprio filme. Houve também aqueles que, não particularmente interessados no estilo de Walter Salles, lamentaram que o sucesso de Ainda Estou Aqui estimularia mais filmes com propostas estéticas pouco inventivas, ou que se poupassem das contradições da história política do país, de maneira a torná-la palatável às custas de reconhecer sua complexidade.
Em exemplos mais drásticos, houve quem achasse apropriado apontar a felicidade com o êxito do filme como marca da involução do território brasileiro, desprezando a postura de celebração como uma atitude indigna, que minimizava a verdadeira potência do cinema nacional. Frequentemente, os interlocutores dessas falas ecoavam uma postura de autoridade à moda de “Eu conheço o cinema brasileiro, você não”. Consequentemente, os argumentos que pareciam querer se preocupar com a autonomia do imaginário brasileiro e se opor aos instrumentos de hegemonia cultural americana caiam na armadilha do elitismo e exclusão, pecado muitas vezes atribuído erroneamente à cinefilia, mas que muitos cinéfilos ainda tem mais chances de cometer do que parecem dar conta.

É lastimável observar que alguns que tem apreço e curiosidade pelo cinema do país possam ainda interceder em uma retórica arrogante contra aqueles que não tem o mesmo repertório, especialmente por haver sim críticas necessárias não só ao Ainda Estou Aqui, mas principalmente ao peso da indústria estadunidense na relação que temos com o nosso próprio cinema. Ao filme enquanto obra, deve ser permitida a reflexão que revele suas limitações (às quais não me debruço aqui), mas ao produto, é urgente compreender a contradição que, para gerar orgulho nacional, foi necessária uma trajetória gloriosa em caminhos estrangeiros, por caminhos que, mesmo abertos, são de uma navegação quase impossível.
Em verdade, o norte apontado pelo longa-metragem oscarizado permanece somente um distante horizonte para a vasta maioria dos realizadores que mantém pulsante o cinema brasileiro. Eles não podem arcar com orçamentos milionários vindo de dinheiro privado ou sustentar um ano de trabalho em somente um único projeto. É privilégio de poucos conquistar uma estreia na seleção oficial de um dos maiores festivais de cinema do mundo, e ainda menos podem sair de lá com um prêmio e ter então um orçamento subsequente que arque com viagens e eventos para múltiplos membros da equipe durante meses, alimentando o interesse e prolongando a vida do seu trabalho. É de direito o orgulho de ver uma representação competente do Brasil gerando admiração no além-mar e adesão ao cinema no território, tanto como é insustentável que essas ocorrências sejam dependentes de um grupo muito restrito de profissionais que, pela própria limitação do grupo, não podem dar conta de representar a grandeza do cinema nacional.
O prazer quase irracional da torcida foi invocado por Ainda Estou Aqui, mas está presente na cultura brasileira como uma força motriz e não vai a lugar algum – e nem deveria. No entanto, esse prazer não pode blindar a consciência que não basta o amor ao cinema aflorar no território nacional, de maneira tão ampla e difundida, somente a cada meia década, às custas do nosso punhado mais elitizado. Concomitantemente, aqueles que conhecem o vasto corpo do cinema nacional não podem jamais desprezar o interesse honesto, mesmo que superficial e condicional, de quem teve pouco contato com filmes brasileiros ao longo da vida. Me parece, curiosamente, que na intersecção das duas questões, há um ponto (cego) em comum: a questão das políticas de distribuição.
O Brasil é um país que, em seus momentos mais fortes do ciclo audiovisual, foca seus esforços públicos e privados nas etapas de produção, mas nunca organiza a contento como essas produções vão alcançar um público. Uma das principais consequências dessa escolha é que o cinema brasileiro se expande e enriquece, mas alheio ao olhar de parcela considerável da população, que desde a tenra infância é público-alvo de obras americanas, estabelecendo uma relação afetiva com seus estilos.
Essa relação de afeto e prazer com o que não é nosso é difícil de interpelar – reitero: somos apaixonados pelas nossas paixões – mas são as políticas de distribuição o mais importante instrumento disponível para equilibrar a balança. Países como os EUA e a Coreia do Sul, que exportam suas narrativas e populam o imaginário juvenil, contaram com regulamentações, cotas de tela, acordos comerciais com plataformas no exterior e várias outras medidas como abre alas nas estratégias de consolidação de suas indústrias.
O Brasil, por sua vez, tem uma “cultura altamente referencial, mas abaixo da Linha do Equador”. A frase de Fernanda Montenegro, lida em carta para sua filha após a vitória do Globo de Ouro, identifica o nosso território como chave da compreensão para nossa relação com nossa própria arte. Somos, afinal, um das grandes audiências do mundo, devorando e consumindo exportações culturais diversas, e melhor servimos a economia global da mídia se estivermos disponíveis para absorver o que nos vendem, sem o importuno de consumirmos a nós próprios.
Consequentemente, a história das políticas de distribuição no cinema nacional é inconstante. O primeiro grande esforço público data do final da década de 30, quando Vargas estabeleceu o Instituto Nacional de Cinema e Educação, voltado mais às escolas que ao circuito comercial. Eventualmente, as atribuições do órgão seriam transmitidas à Embrafilme para impulsionar o cinema nacional durante a Ditadura Militar, com seus mecanismos de censura e perseguição. A empresa, por sua vez, seria encerrada na administração Collor no começo dos anos 90, gerando o apagão do cinema nacional, do qual sairíamos lentamente com o chamado Cinema de Retomada, meia década depois. Em comparação simbólica, as empresas estrangeiras atuam constantemente em solo nacional décadas antes dos primeiros esforços brasileiros, com a Paramount abrindo seu primeiro escritório no Brasil já em 1915.
Hoje, vivemos o que se denomina de Nova Retomada, com a movimentação do ciclo da economia cultural pós-Bolsonaro, gerando trabalho e enchendo os olhos do país. Ainda Estou Aqui surgirá, sem dúvida, como um marco desse momento nos livros de História futuros. O que parece ainda triste é que há altas chances desse momento ser lembrado como mais um ciclo de êxito momentâneo, com data para acabar. Paralelo ao sucesso dos filmes, vemos um entrave em regulamentar a atuação do streaming no país, que vem tomando o espaço de distribuição da TV e do cinema sem contribuir com o país em troca de fazer valer nele seus interesses. São ofertas externas que ocupam o lugar do produto nacional através do capital que tem em mãos, e com essa licença financeira, tem permissão de fazê-lo não só fazendo frente a quem produz, mas desestruturando o ciclo inteiro, de formadores até arquivistas.
Esses entraves, pouco glamourosos e potencialmente enfadonhos, não correspondem ao encanto que muitos identificam como sinônimo da palavra “cinema” – sejam eles partes do público cinéfilo “especializado”, que se atenta ao circuito de arte/alternativo onde nossos filmes vão parar simplesmente por serem falados em português, ou parte do público mainstream, que até alguns anos consumia filmes em cinemas de shopping, e afastado agora pelo encarecimento das exibições, os encontra dependente do catálogo imaterial dos streamings não regulados. Ainda assim, são essas questões que determinam quais imagens vemos, e com quais podemos sonhar.

E se hoje sonhamos com imagens do cinema brasileiro, mesmo que limitados aos filmes de Torres e Montenegro, em uma torcida tão entusiasmante e efêmera quanto o Carnaval, resta ainda uma esperança que o gosto pelo cinema seja tão frequente quanto o gosto pela folia. E que essa paixão não só celebre, mas também exija as condições necessárias para celebrar, tanto fortificando as políticas já existentes como readaptando-as para a realidade de circulação dos filmes brasileiros, que existem em outros lugares para além das salas de exibição clássicas.
Esse sonho não é uma mera fantasia, mas uma ambição coletiva, possível com um público amplo que enxergue a regulamentação das plataformas e avanço das medidas de distribuição tão necessárias ao cinema como o feriado é às festas de fevereiro. E mais ainda, com um público especializado que não se regojize do cinema brasileiro como um nicho, e que entenda a popularização desse catálogo, como todas as questões e enfrentamentos que isso impõe, como uma responsabilidade democrática da mais alta ordem.
A brisa é agradável quando sopra do hemisfério norte rumo ao nosso litoral, e não há motivo para se abrigar dela, ou para não ouvir os gritos de celebração que provoca e carrega. Mas os ventos do norte não movem moinhos, ou pelo menos, não os nossos moinhos, dos quais merecemos mais do que desejam os sopros do outro lado do Equador. Espero sonhar com imagens que podem cruzar essa linha cada vez mais, mas por potência, e não por necessidade de reconhecimento. Espero que essas imagens sejam plurais e distintas entre si e do que já existe lá fora, para refletir a originalidade brasileira. Espero que o fervo da torcida seja constante de nos vermos em grandes e pequenas telas, sem depender dos olhares boreais. E que seja bom reconhecer quando o cinema brasileiro voa alto, mas sem requerer céus de outros países para que isso seja possível. A nossa abóbada sempre bastou, e nossas asas sempre foram mais fortes do que ventos alheios. E com prêmios ou não, que o cinema brasileiro seja perene orgulho de seu povo, que saiba cada vez mais: nós sempre estivemos aqui.
Comments