
No rol de personagens de Sean Baker, Ani (Mikey Madison) está ao lado de Sin-Dee (Kitana Kiki Rodriguez) e Alexandra (Mya Taylor) de Tangerina (2015) e Halley (Bria Vinaite) de Projeto Flórida (2017). Todas são mulheres que sobrevivem em diferentes cantos dos Estados Unidos como profissionais do sexo, todas colocadas em situações-limite e forçadas à batalha.
Anora (2024) começa uma comédia romântica temperada a Garry Marshall e Cinderela, com o frenesi da relação entre Ani e o herdeiro Ivan Zakharov (Mark Eydelshteyn) transbordando para a tela em uma montagem de festas, sexo e luzes neon; em um raro momento de calmaria no primeiro ato, após Ivan pedi-la em casamento, Ani se permite apostar em na sorte e sonhar com um futuro diferente. O conto de fadas é quebrado quando Toros (Karren Karagulian, hilário) assume a tela, encarregado pelos pais de Ivan (Aleksey Serebryakov e Darya Ekamasova) a dar um fim ao casamento; acompanhado por Garpnik (Vache Tovmasyan) e Igor (Yura Borisov, interpretando-o com uma gentileza estóica merecidamente reconhecida nesta temporada de premiações), os três arrastam Ani por Nova Iorque atrás de Ivan, que fugiu ao saber que os pais estavam a caminho. O desenrolar do filme mostra um Baker muito confortável entre sua dramédia característica e a comédia pastelão — resultando em uma screwball comedy como há tempos não via no cinema e seu filme mais acessível.
A filmografia de Baker mostra seu interesse em olhar para as margens do sonho americano: Los Angeles em Tangerina, Orlando em Projeto Flórida, Texas City em Red Rocket (2022) e, agora, Nova Iorque são filmadas a nível de rua com uma câmera que perambula por becos, que adentra estabelecimentos sem a menor cerimônia, perseguindo, quase atordoada, personagens que lutam para sobreviver vendendo o almoço para pagar o jantar. No entanto, se antes a câmera estava presa na periferia, em Anora a riqueza engolfa a protagonista e tem a chance de mostrar o que há de decadente também na opulência.

Baker explica que sua escolha por retratar a classe trabalhadora vem do desejo de representar pessoas que normalmente não são protagonistas no cinema. Seu realismo social é marcado por um determinismo pessimista e gera um debate recorrente se sua abordagem é humanista ou fetichista. O grande trunfo de seus filmes não é uma reviravolta, mas sua habilidade em contar uma história da qual já sabemos o desfecho e, mesmo assim, instigar um fiapo de esperança de que aqueles personagens possam ter outro fim, que possam fazer escolhas diferentes.
Se em seus filmes anteriores a preocupação de Baker era com a ambiguidade, aqui ele abraça completamente o maniqueísmo, quase tudo sendo exatamente o que parece. Personalizando a vilania na figura dos super-ricos, é na forma como os demais personagens se imaginam tratados pelos Zakharov que cada um mede seu próprio valor e alavanca seu status social; a ironia está no modo indistinto com que cada um é verdadeiramente tratado: subservientes ou desafiadores, todos vão acabar igualmente prostrados aos desmandos dos poderosos.
Mais que vilões, Anora tem claramente uma heroína. Ainda que textualmente a personagem seja chamada de ingênua, a interpretação de Mikey Madson deixa clara a obstinação desesperada de quem apostou todas as suas fichas e se recusa a conceber qualquer cenário que não seja a vitória; a cena em que ela é forçada a admitir a derrota é tão avassaladora, tão violenta, a ponto de sugar toda a comédia do filme. A forma como o roteiro traça seu caminho reforça a objetificação de Ani, o tempo todo conduzida por escolhas das quais não tomou parte; à deriva na vontade dos outros, sempre escondendo algo de si.

Bússola moral do filme é o olhar do capanga Igor sobre Ani, em igual medida incrédulo e comiserado, que banha a protagonista com uma simpatia que beira a condescendência, consolidando uma personagem que nunca parece desenvolvida o bastante, mas para a qual o filme se retorce para estender uma solidariedade que se não é exatamente conquistada por ela, surge do testemunho de sua completa humilhação.
Não por acaso Ani olha diretamente para a câmera em sua última conversa com Igor: enquanto tenta recuperar a partir dele os resquícios de seu valor, é com nosso olhar que ela negocia nos únicos termos que conhece, oferecendo o próprio corpo pela dignidade que lhe foi obliterada a mando dos Zakharov, escapando uma sinceridade que até então ela não tinha se permitido. O olhar que ela recebe de volta é um de choque e pena que parece, enfim, começar a lhe desvendar.
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