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O Som e "O Sabor da Vida"

Foto do escritor: MontezMontez
Benoit Magime e Juliette Binoche em O Sabor da Vida. Foto: Divulgação/Diamond Films

Podemos dividir o cinema em dois polos sonoros não-excludentes. Em um deles, temos o vococentrismo, onde a voz dos atores é proeminente, destacando-se dos demais sons. Esta abordagem busca enfatizar a comunicação verbal e as emoções transmitidas pela voz dos personagens. Por outro lado, temos o cinema háptico, mais recente cronologicamente, onde os elementos sonoros são apresentados de forma não-diferenciada, convidando o espectador a escolher os sons que mais o afetam. Essa abordagem cria um ambiente sensorial imersivo, onde os sons se amalgamam e o espectador tem liberdade para interpretar e se conectar com diferentes aspectos da sonoridade. O que O Sabor da Vida (La Passion de Dodin Buffant, 2023), de Tran Anh Hung, faz nesse sentido é unir essas duas formas de percepção sonora e, através delas, construir uma experiência que una seus dois pontos de interesse: a história de amor entre Dodin (Benoît Magimel) e Eugenie (Juliette Binoche) e a paixão de ambos pela feitura culinária.


Tomemos como exemplo central dessa questão os primeiros momentos do longa-metragem. Ainda naquele momento em que manhã e noite se encontram poeticamente, a personagem de Binoche, cuidadosamente, colhe uma das raízes que usará para um dos pratos que irá preparar. A câmera comandada por Tran Anh Hung passeia pelas mãos da personagem, pela forma que ela manuseia o alimento, para logo encontrar o rosto de Binoche, como se tratasse de algo muito além de uma simples colheita: é a primeira forma de contato com aquilo que logo estará sendo degustado. Tudo isso, embora perceptível através da visualidade pela forma com a qual as lentes passeiam pelos detalhes, é encorpado com a utilização cuidadosa do aspecto sonoro. François Waledisch, Paul Heymans e Thomas Gauder, responsáveis pelo departamento de som do longa, não só texturizam os sons da natureza que emergem do exterior, como mesclam com os sons produzidos pelo alimento sendo preparado e cozido.


Foto: Divulgação/Diamond Films

É formidável como a fluidez com a qual a cozinha e o ato de cozinhar nos é apresentado transforma o filme algo que ultrapassa as barreiras características de imagem e som. Em outros termos, na crença de que um cinema sensorial se faria por meio de efeitos produzidos na sala do cinema, Tran Anh Hung — assim como Apichatpong Weerasthakul ou Naomi Kawasi, para citar dois exemplos — demonstra que a sensorialidade no cinema está na forma com a qual o imagético e o sonoro se combinam, fazendo com que a câmera se torne um olho atento e o som se mescle em um produto cujo afeto também está no ato de cozinhar. Nessa sinergia, entrada, prato principal e sobremesa, durante longos minutos levam o espectador para dentro daquela cozinha cuja iluminação é quase onírica e onde a preparação dos alimentos se torna uma expressão tátil e visceral do afeto. Assim, tal ambiente se converte em um espaço onde os sentidos se entrelaçam, convidando o espectador a saborear não apenas com os olhos e ouvidos, mas também com o coração.


Durante os momentos em que a cozinha é o cenário central, Dodin e Eugenie raramente conversam sobre questões envolvendo sentimentos. Todos os atos físicos de ambos envolvem mexer o conteúdo de uma panela, descascar algo, refogar outra coisa e assim por diante. Mas são nesses momentos que tal paixão se constrói. Ao trabalharem juntos, o que se constrói é um amor cujas bases fundadoras está no sensorial: no tato de um alimento, no cheiro de uma panela ao fogo, no ouvir um alimento borbulhar numa frigideira, na visualidade de um prato bem montado e no paladar de uma refeição que ao se fundir com tantos sabores é capaz de provocar lágrimas nos olhos. No momento em que Eugenie, que sempre cozinhou para Dodin, cai doente, a única forma que ele encontra de mostrar seus sentimentos é trocando de papéis com ela. Ao entrar na cozinha e preparar uma sopa, ele está declarando seu amor.


Foto: Divulgação/Diamond Films

Então, se em alguns clássicos do cinema, as paixões são postas em palavras que se tornam célebres como o "nós sempre teremos Paris" de Casablanca (Michael Curtiz, 1942), isto é, através do vococentrismo, Tran Anh Hung aposta no háptico e nas sensações provocadas pela comida. O que está posto na mesa é muito mais que um prato bonito e cujo sabor quase pode ser sentido através da tela do cinema, é  uma profusão de sentimentos e segredos que apenas os dois conhecem. Cada intenção posta no prato significa algo mais para quem saboreia. Os vinte anos de convivência se dão em importância pelo que foi produzido na cozinha que pelos encontros noturnos de ambos, tanto que esses momentos passam muito rapidamente. O ato de conquista e amor é aquele que ocorre dentro da cozinha e, portanto, responsável por iluminar o espaço. Quando ele escurece, se torna silencioso. Todas essas imagens se sobressaem quando se permite que o silêncio do ferver e cortar a comida ganhem força e o olhar de Dodin para Eugenie seja tomado pelo que só pode ser descrito através do sabor.

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