Curadorias de Chamados: Uma Entrevista com João Rêgo e Felipe Karnakis
- Felipe Duarte
- 6 de mai.
- 18 min de leitura
Atualizado: 7 de mai.

Na cidade do Recife, as salas de exibição da Fundação Joaquim Nabuco são um aparato de acesso ao cinema com décadas de história. Entre idas e vindas, esses espaços formam gerações de cinéfilos, permitindo acesso ao circuito de filmes de “arte”, destino da maioria dos produtos fílmicos brasileiros. Mas, mesmo que acolhido em espaços como esse, o cinema nacional enfrenta uma grande barreira com a falta de demanda do formato que mais o movimenta: o curta-metragem.
Em um esforço para atravessar esse obstáculo, Felipe Karnakis e João Rêgo organizam mensalmente a sessão “Chama Curtas” pela Fundação, onde atuam como Assistentes de Curadoria. Em conversa com a Nostalgia, a dupla discute a importância e as possibilidades dos curtas-metragens, as maneiras de reinventar os meios de acesso a esses trabalhos, a formação de público e como chamar, através desses filmes, uma audiência às salas de cinema.
Felipe Duarte: Pra começar do começo mesmo, queria saber como foi que vocês conheceram o formato do curta-metragem. Vocês cresceram assistindo curtas? Como aconteceu essa aproximação com esse formato de cinema? Em que fase da vida isso rolou, e qual foi a primeira impressão que vocês tiveram?
João Rêgo: Eu não tinha tanta familiaridade com curtas. Sempre fui um cinéfilo raiz de longas mesmo. Só que aí teve uma virada pra mim, que acho que foi com a Chama Curtas, e também quando comecei a acompanhar festivais, né? E aí eu vi que a maior parte da programação dos festivais que eu gosto — sei lá, Tiradentes, Olhar, esses festivais com mais relevância — é composta por curtas. E aí quando a gente fez o Chama Curtas e começou a pesquisar dentro dessa ideia, eu terminei adentrando mais esse mundo, e meu repertório aumentou em termos do que está acontecendo, da movimentação de cinema. Eu saí desse lugar de: “ah, o que eu consumo são cineastas internacionais, cineastas europeus, tailandeses, asiáticos e tal” pra começar a consumir cineastas brasileiros contemporâneos que estão produzindo imagem, produzindo coisas além do longa.
Acho que quando a gente teve contato com o CTAv, com o Cine Limite, com a Cinemateca Pernambucana, com essa cinematografia mais histórica, tem muitos curtas que são registros de cineastas históricos daqui, que, na época, no Super 8, não faziam longas, faziam curtas. A gente vê que o curta virou também esse formato que guarda um registro histórico de um cinema que me interessa. O que o Jomar Muniz de Brito fazia de curta, o que o Geneton fazia, o que a galera do Cine Limite foi digitalizando, outros filmes que a gente foi tendo acesso... A minha relação com o curta terminou respondendo a tudo isso.
Felipe Karnakis: Minha vontade com o cinema começou muito no cineclube, né? Eu frequentava um cineclube na minha cidade, o Cineclube Incinerante, que tinha esse olhar para os curtas. Acho que foi a partir daí que comecei a sacar mais ou menos a trajetória deles, e foi daí que veio o meu interesse por cinema. Tem também isso que o João falou sobre uma cinefilia de internet, que eu acho que é muito da nossa geração. E, na universidade, comecei a ver um outro potencial no curta. Por estar fazendo faculdade de cinema, e a galera sempre produzir curtas, isso começou a me inquietar. Sempre assisti muitos longas, mas percebi que a pulsação da produção do cinema independente, do cinema universitário, sempre atravessa os curtas. Ao mesmo tempo, via pouca gente assistindo a curtas, mesmo querendo produzi-los. E tinham como referência principal os longas, o que eu acho interessante, mas acredito que a linguagem do curta, pela duração, é diferente.
A partir disso, surgiu uma vontade de assistir a mais curtas e de pensar na sua difusão. Eu estagiava na TV Universitária e comecei uma sessão de curtas pernambucanos universitários. E foi também através disso que comecei a frequentar festivais de cinema. Começou também um interesse muito grande por preservação. Meu TCC hoje é sobre isso: preservação, digitalização de Super 8. E acho que isso atravessa também o que o João falou, algo que faz parte da nossa trajetória: essa atenção aos curtas como documentos históricos e, ao mesmo tempo, negligenciados. Quando a gente estuda um cineasta, geralmente foca nos longas, mas os curtas têm um peso e carregam coisas importantes. Acho que isso também faz parte da identidade do Chama Curtas: trazer obras que não foram muito vistas. E acho que isso entra numa outra questão que considero muito importante, que é o curta como rede, como meio de conhecer territórios e pessoas que estão produzindo, principalmente por essa característica ligada ao cinema independente, universitário, jovem. Através disso, conseguimos nos conectar com outros territórios.
Felipe Duarte: Queria saber como foi a proposição do Chama Curtas, especificamente da forma como ele existe hoje, com a autoria de vocês dois — já que vocês são uma influência direta no projeto. Parece que Karnakis já tinha um projeto similar antes de entrar no Cinema da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), né? Mas como foram as conversas para gestar o que é o Chama Curtas hoje? E como ele foi mudando? Quanto tempo o projeto já está ativo e de que maneira ele se transformou ao longo desse tempo?
João Rêgo: Eu acho que nasceu a partir dessa postura do Felipe. Ele tem esse complemento, porque vem do cinema. E eu venho do jornalismo, mas de um lugar mais voltado à pesquisa, à crítica. Então eu tinha esse olhar mais “cabeçudo”, digamos assim. E quando o Felipe traz essa coisa mais prática, do fazer a sessão, a gente acaba juntando esses dois mundos para conseguir produzir. A gente já estava trabalhando no Cinema da Fundação há um bom tempo. E o tempo foi passando e a gente se deu conta: “cara, a gente não tem nenhuma janela de exibição aqui no cinema”. A gente precisava criar essa janela, especialmente por sermos assistentes de curadoria.
Uma forma de escoar essa produção era buscar um gargalo na programação. E o gargalo era claro: clássicos já têm espaço, já foram exibidos, existem várias janelas para os grandes filmes. Mas o que não existia era uma programação regular de curtas. Pelo menos não no Cinema da Fundação — e acho que em poucas salas de cinema ao redor do Brasil. São raras as que exibem regularmente curtas-metragens no cinema. Então foi isso: “caramba, vamos ocupar esse espaço e propor algo”. Porque seria algo que ninguém da curadoria, que está envolvido com os longas, iria querer assumir. E a gente tomou isso pra gente. E tocamos. E seguimos.
Felipe Karnakis: A parceria com o João é algo muito, muito rico. Acho que vai além do conhecimento, da curadoria, das trocas nesse sentido — tem muito de a gente não desistir e se impulsionar mutuamente. Porque é difícil, sabe? É um trabalho que exige bastante. É uma pesquisa que fazemos com muito cuidado. E acho que essa é uma das pulsões também: o fato de serem curtas permite que a gente crie programas com mais filmes, o que nos dá a possibilidade de estabelecer relações diferentes — seja por fricção, por tensão entre os filmes, ou por afinidades temáticas e formais. Isso permite uma curadoria mais livre, onde a gente consegue brincar bastante. Acho que o projeto nasceu disso mesmo, de perceber esse espaço disponível. A gente criou o nome, o conceito, e fez tudo só nós dois, de fato. E quando digo só nós dois, é à frente do projeto, né? Porque tem muita gente junto. E isso sempre foi parte da proposta: chamar convidados para curar. Desde o início tivemos essa vontade de trazer pessoas para junto. Essa ideia de colaboração está dentro da gente. E a gente preza muito por uma curadoria que não seja engessada, nem centralizada só em nós dois. Acho que essa proposta de curadoria compartilhada é rara em cinemas. E a gente também luta por uma curadoria autoral, por uma programação autoral.
João Rêgo: A ideia era simples e política: exibir curtas-metragens. Só que, com o passar do tempo, nossa janela se mostrou muito específica — é uma sessão mensal. Ou seja, dentro de um ano, realizamos 12 sessões. E não tem como dar conta de toda a produção de curta-metragem, seja em Pernambuco, no Brasil ou em outros lugares. Então, naturalmente, como curadores, passamos a trabalhar com a ideia de programas de curadoria, que, pra mim, é a base de fazer uma sessão de curtas. Com o tempo, a gente foi estabelecendo critérios mais sólidos para nós mesmos. E também há esse sentido coletivo, como o Felipe mencionou, de envolver pessoas da sociedade, do meio cinematográfico, para construir com a gente. Já fizemos sessões com a Tarrafa, com a Surto e Deslumbramento, com o CTAv, com a Cinemateca Pernambucana, com o CineLimite, o Paço do Frevo, o Nostalgia... Sempre tivemos essa ideia de expandir o projeto. Mas, ao mesmo tempo, há uma vontade nossa de propor algo autoral, com curadoria. Porque teve um momento em que, ao ter mais contato com os curtas, começamos a querer exibir os filmes que a gente realmente gosta de assistir. Então isso acabou virando uma marca forte nossa: exibir aquilo que nos interessa, que nos atravessa e que achamos que merece circular por aqui.
Felipe Karnakis: Foi uma virada de chave, né? Porque não se trata apenas de exibir curtas. A gente estuda os curtas e pensa em como eles podem compor uma programação interessante. Uma programação que, como o João disse, inclua filmes que a gente gosta, mas também filmes que acreditamos ter apelo para o público. Filmes que, muitas vezes, ainda não foram exibidos aqui em Recife. Então, sempre que a gente pensa em um filme, há todo um trabalho por trás para combiná-lo com os outros da sessão. Não é simplesmente exibir curta por exibir — tem um trabalho curatorial envolvido.
João Rêgo: Isso também acredito que seja uma forma de fazer os filmes circularem, criar um circuito de distribuição. Por exemplo, acho que em Pernambuco, além do Cine PE, talvez o Janela [Internacional de Cinema do Recife] seja o único dos festivais de renome que traz curtas para exibição. Mas não existe uma sessão regular para curtas, então muitos filmes acabam passando batido. E há cineastas produzindo trabalhos essenciais, fundamentais para o cinema brasileiro contemporâneo, que nem sequer têm seus filmes exibidos aqui. Quantos filmes de Lincoln Péricles foram exibidos aqui? E de Carlos Adriano, Vinícius Romero, que é um cineasta pelo qual desenvolvemos grande interesse? A única janela de exibição é esperar que a curadoria do Janela os traga, e, caso contrário, eles simplesmente não serão exibidos.


Felipe Duarte: Como funciona esse processo específico de curadoria das curadorias, e especialmente como ele acontece, sabendo que vocês têm sempre um mês para se preparar entre as sessões? A própria ideia dos diálogos entre as curadorias é quase um toma-lá-dá-cá entre as pautas que o cinema está abordando naquele bimestre, por exemplo. Isso acontece também entre a crítica e outros aspectos. Então, como é que vocês fazem a curadoria das curadorias e o quanto vocês se preocupam em entrar nas conversas que acompanham, nesse "mundinho" do cinema?
Felipe Karnakis: Essa questão de curadoria das curadorias é bem interessante. Acho que são duas coisas super interessantes, montar programas e também escolher, convidar, né? Acho que isso tem muito a ver com a gente se mostrar atento às coisas que estão rolando na cidade, no território, em diversos lugares. A gente pensa muito nesse lugar privilegiado que temos, de estar em um cinema super importante para a cidade e como convidar essas pessoas para esse cinema. Porque o trabalho que a gente faz também é de trazer e diversificar o público de alguma forma para o Cinema da Fundação. Sabemos que o público é elitizado, mesmo com o ingresso mais barato. Mas acho que é a gente chamar pessoas diferentes para atrair pessoas diferentes. Esse é sempre o caminho. Então, a ideia é chamar pessoas que estão pensando, pesquisando, pessoas que a gente acompanha, como o que a Nostalgia está produzindo, o que o Cineclube XHY247 está fazendo, o que a Tarrafa está fazendo, outras pessoas que também estão pensando sobre a cidade.
E a gente tem essa vontade de ser um espaço de acolhimento, um espaço onde conseguimos ver filmes com muita qualidade. E aí entra outro processo nosso, que é um treinamento técnico, para entender sobre projeção, som e tudo mais. Dentro das limitações dos filmes que recebemos, sempre tentamos trazer o melhor possível do que o diretor ou a pessoa que fez o filme trouxe para ele. Então temos um cuidado grande com a exibição. A gente também tenta trazer pessoas que, muitas vezes, estão exibindo em outros territórios, na rua, fazendo cineclubes, e trazer para o cinema, para que esse movimento também aconteça nesse espaço. Dentro das curadorias e programações que vemos de grandes programadores e curadores, existe algo muito centrado na pessoa, no que ela conhece de cinema. E, para nós, ter um olhar atento para o que outras pessoas estão pensando sobre cinema também é super importante para um espaço de exibição.
João Rêgo: Prezar pela qualidade, que é algo que a gente sempre busca. E não é para o purismo, mas para realmente buscar o espaço do cinema enquanto um espaço que potencializa também essa exibição de curtas. A gente fez uma sessão que era usando a escuridão do cinema para potencializar os curtas. Fizemos uma sessão que foi também uma performance dentro do cinema, essa ideia de expandir a sala. Então a sala de cinema é como se fosse um laboratório, de pensar como vamos exibir essas coisas e modificar. E os curtas permitem essa maleabilidade. É brincar com as sensações, com as sensibilidades, porque, como são vários filmes de narrativas curtas, às vezes até peças de arte visual, experimentais e narrativas, você pode montar e gerar várias sensações no público. Acho que o trabalho do curador, assim como o da pessoa que faz a expografia, é muito de organizar aquilo ali para gerar uma sensação no que você está olhando. E a gente não é o detentor desse poder, como o Felipe disse. É estar aberto a todo tipo de passagem. Principalmente dentro das nossas limitações, porque eu e o Felipe somos duas pessoas e cada um traz a bagagem que tem, então criamos a partir da bagagem que temos. E é por isso que sabemos reconhecer nossas limitações e trazer outras pessoas para se juntar a nós. Eu acho que tudo nasce também do amor, querer ver essas coisas na tela e querer assistir esses filmes na tela do cinema. Afinal, a gente trabalha no cinema, gosta de cinema e gosta de assistir filmes.
Felipe Duarte: Tem essa questão importante de diversificar o público do espaço, mas também de fazer isso por meio de diferentes perspectivas sobre o que é uma sessão. Curadorias assinadas por coletivos ou indivíduos distintos atraem públicos diversos, e isso enriquece as sessões. Tudo isso sob a chancela do que é o Chama Curtas. Como vocês lidam com o público do Chama Curtas? Há um acompanhamento nesse sentido? Existe uma fidelização, ou um mapeamento de quem retorna? Ou o foco está mais na circulação e na renovação do público? Como vocês pensam e atuam nesse desenho de público nas sessões?
Felipe Karnakis: Toda sessão a gente pensa nisso, justamente porque temos essa consciência enquanto exibidores também. “Quem vai vir ver essa sessão?” Essa é uma pergunta que a gente sempre se faz e que fica no ar. Tanto que, às vezes, escolhemos um filme que achamos que vai atrair mais gente, para que ele impulsione e traga pessoas para assistir os outros filmes. A gente já tem um público meio que garantido. Não são todas as vezes juntas, mas são pessoas que sempre estão lá, que viraram nossos amigos, de alguma maneira. E não são nem pessoas jovens, assim, né? É um público específico da Fundaj, composto por alguns idosos, que sempre estão na sessão de curtas. Eles sempre acham interessante vir para o debate.
João Rêgo: Eu acho que estão buscando também algo especial, algo diferente.
Felipe Karnakis: Verdade. Coisas que saem um pouco do usual. E aí eu acho que entra nisso de chamar pessoas. Ela está muito dentro disso, porque cada grupo que vem e faz um programa atrai pessoas diferentes. E essas pessoas começam a conhecer o Chama Curtas também. A gente já teve exibições com poucas pessoas, seja por data, seja por um programa que não cativou muito. Eu acho que nosso pensamento sobre o público é um pouco esse: que é algo trabalhoso, mas é algo que vale a aposta. Então, quem vem, e quando vem uma pessoa nova, é sempre uma felicidade.
João Rêgo: Eu acho que o público de Recife é muito interessante para o cinema. Acho que o público tem respondido bem, até porque a gente já está há quase dois anos fazendo isso. Então, termina gerando uma coisa sedimentada. Até nas redes sociais a gente vê a repercussão, a galera já se interessa até pelo projeto mesmo. Às vezes vem porque acha que é uma sessão de curtas, sem saber se é igual aos outros filmes e tal. Mas é uma sessão de curtas e vai ter alguma coisa ali que vai atravessar, vai interessar em algum momento.
Felipe Duarte: Nessa linha da relação com o público, eu queria levantar um ponto. A última entrevista que fizemos para essa mesma coluna também tratava da ideia do curta-metragem, mas dentro da lógica do streaming. A gente conversou com Luiz Fábio, da Cardume Curtas. E aí o que vocês fazem vai em uma direção mais clássica do consumo do cinema. Vocês estão chamando as pessoas para consumir curtas numa sala de exibição. Queria ouvir de vocês qual é a importância de trazer para a sala de exibição e como é ter essa perspectiva dialógica, às vezes meio experimental, com um espaço que é o espaço clássico.
Felipe Karnakis: Eu sou muito defensor dos espaços de exibição físicos, compreendendo também a importância do streaming. Acho que uma coisa não anula a outra. O cinema deve se apresentar de diferentes maneiras, cada uma em sua melhor forma, impulsionando de uma maneira significativa. Eu gosto muito do trabalho da Cardume e acredito que isso também é super importante. Isso acaba alcançando outros lugares que, às vezes, nem imaginamos. Eu acredito que ter um espaço exibidor físico, um cinema, envolve algo que está muito ligado a um território e às questões contextuais desse território. Por isso, é muito importante para a gente que todas as nossas sessões terminem com um debate. A gente até questionava se o debate era mesmo necessário. Porque existe também uma noção de cinema em que você assiste aos filmes e simplesmente os filmes acabam ali, a sensação fica com as pessoas, e isso também tem seu valor. Mas, para a gente, nossa sessão é uma sessão de formação de público. A gente entendeu isso e acredita que o debate é algo fundamental nesse processo. Isso remete um pouco ao cineclubismo. E acho que é isso que a gente traz: a importância dos curtas no cinema. Como falamos bastante aqui, só reforçando, curtas no streaming é algo super importante, curtas em festivais, curtas na rua, mas também os curtas dentro de espaços fixos, em uma grade no cinema é essencial.
João Rêgo: A gente trabalha no cinema, né? E esse é um lugar que encontramos para exibir e fazer o filme circular. Acho que o cinema, embora não valide de forma absoluta, potencializa essa exibição do curta. Estamos exibindo um cinema que já tem uma carga cultural e formativa desde sua base. Exibidores como esse, que fazem parte desse circuito de validação, têm um papel importante. Quando o cineasta faz um filme, por mais que ele consiga exibi-lo em streaming, por exemplo, ele pensa na circulação do filme, e essa circulação está intimamente ligada à exibição na sala de cinema, com a qualidade de som, imagem e toda a experiência que ele espera. Por isso, exibir no cinema é importante, não por uma questão de purismo, mas por uma questão de validação do espaço. É sobre onde o filme merece estar, sobre seu lugar, de alguma forma. Lembro que, no início das nossas exibições, sempre trazíamos à tona um dado histórico: houve uma lei que obrigava a exibição de curtas-metragens antes dos longas nas programações. A gente sempre trazia isso como justificativa, como um argumento para a exibição: ‘Estamos no cinema, e queremos exibir esse filme aqui’. Claro, isso não invalida outros espaços de exibição, como na rua, em cineclubes, ou em outros locais. Mas acredito que o cinema também deve ser ocupado por curtas-metragens, é um espaço que precisa ser valorizado e ocupado.
Um exemplo disso foi o trabalho do nosso coletivo Ponta de Rua. Fizemos a estreia de um curta-metragem muito importante aqui em Pernambuco, o Festa Infinita, do cineasta Ander Bessa. A gente organizou um programa de curtas que entrelaçava o filme de Ander com filmes de Geneton Moraes Neto, Almin Stepler, entre outros que ainda não tinham sido exibidos no cinema. Essa estreia foi feita com a ideia de exibir o curta no cinema, e essa escolha de espaço fez toda a diferença. Se a gente tivesse feito isso na rua, teria tido valor, sem dúvida, mas no cinema São Luiz, como fizemos, essa exibição ganhou uma relevância cultural muito maior. O capital cultural do cinema, nesse sentido, tem um peso que não deve ser ignorado. Não é uma questão de hierarquizar ou monopolizar, mas é importante reconhecer que os filmes merecem ser exibidos no cinema.
Felipe Karnakis: Não é que a gente exclua outras formas de exibição, como as da Cardume, por exemplo, que fazem exibições em uma rodoviária. Eu acho isso incrível. Esses projetos, como os cineclubes, que exibem filmes de forma mais espontânea, são extremamente importantes. Isso também gera um debate muito interessante. Acho que é sobre isso: essas duas formas de exibição podem coexistir, e a gente pode pensar em programas bem imersivos na sala de cinema. A Chama Curtas é um programa nosso que realizamos na Fundaj, e não o fazemos em outros lugares porque entendemos que a Fundaj precisa ter esse programa permanente. Já a Ponta de Rua é um projeto nosso que pensamos para ser realizado justamente em outros espaços da cidade. A gente também precisa expandir essas exibições para além do cinema, ocupando outros espaços. E é isso, acho que a Ponta de Rua surge nesse processo de entendermos o melhor lugar para exibir os filmes.
Felipe Duarte: Tenho a impressão de que vocês têm uma percepção muito aguda do curta-metragem não apenas como um formato técnico, mas como um conceito estético próprio, que dialoga profundamente tanto com a atualidade quanto com a história do cinema brasileiro. O curta, e a multiplicidade de formas de acesso que ele permite, pode circular entre os espaços clássicos de exibição e também ocupar o espaço público de maneira potente. Pensando nisso, minha pergunta é: ao lidarem com um objeto que vocês reconhecem como tão rico e politicamente potente, qual é o significado político que vocês atribuem ao trabalho que realizam hoje?
Felipe Karnakis: Minha resposta sobre essa questão política vai muito no sentido primário da palavra: de polis como cidade e, nesse caso, no sentido de conexão. Esse sentido de conexão é algo que realmente enriquece. E não são só as conexões diretas, como estar com as pessoas aqui, mas até as conexões que começam por e-mail. Eu, por exemplo, exibi um cineasta que admiro muito, o Bi Gan. Consegui exibir um filme dele, e o produtor dele acabou se tornando meu amigo. A partir daí, conseguimos criar redes com o cinema da China, com o cinema taiwanês, coisas que a gente nem imagina, mas que se tornam possíveis pela nossa geração, pelas conexões de internet, e por estar em contato com pessoas que pensam o cinema em outros territórios. Tive a oportunidade também de participar de um laboratório com curadores de várias partes da América Latina. Acabamos de nos inscrever no edital da SIC e acho que temos chances de ser aprovados. Não é muito dinheiro, mas acredito que o que a gente ganhar vai ser para proporcionar isso, porque entendemos a importância de trazer as pessoas aqui, de estar em outros locais também, de aprender com esses espaços. Acho que tudo isso tem a ver com a nossa vontade de estar nos festivais brasileiros, de conhecer as pessoas, de fortalecer essas conexões e poder trazer essas trocas para o território onde exibimos. O trabalho de programação e curadoria tem tudo a ver com isso, ele não é impessoal, é 100% pessoal. Muitas pessoas não veem assim, mas é um trabalho de conhecer pessoas, trocar ideias, propor debates. Dentro dos nossos sonhos, poder expandir isso, poder fazer isso com mais possibilidades, seria incrível.
João Rêgo: Acho que a gente queria exibir, sabe? Queria ver na tela. Então, a gente dedica tempo para garantir que a qualidade seja boa, para que as coisas funcionem do jeito certo. A gente faz tudo: assessoria de imprensa, divulgação, produção, cobertura, fotos. A gente faz os textos de cobertura, organiza as sessões, faz entrevistas com cineastas para registrar o momento. Ou seja, é um trabalho, mas também é algo que a gente faz porque tem algo de realização pessoal envolvido, né? Enquanto curadores, tem filmes que a gente quer que circulem, especialmente o cinema pernambucano. A gente não programaria algo em que não acreditássemos, que não quiséssemos ver no cinema, que não achássemos que as pessoas deveriam assistir. São imagens nas quais acreditamos muito. E tem a construção do repertório.. Quando trazemos pessoas para cá, elas se conectam com outros espaços da cidade, criam novas experiências. A gente é uma ponte, mas não só para que as pessoas atravessem. A gente também quer caminhar por essa ponte, alcançar novos lugares, novos espaços, criar links por todo o Brasil. Queremos ser esse lugar de referência, um lugar de exibição, de programas e filmes. Acho que é isso, uma perspectiva de vida que a gente traz.
João Rêgo é jornalista, crítico de cinema, curador e programador. Iniciou sua trajetória escrevendo para veículos como Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio e Revista Continente. Desde 2020, integra a equipe de curadoria do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco (PE), colaborando em mostras, estreias e sessões especiais. É um dos idealizadores da sessão Chama Curtas dedicada à exibição e debate de curtas-metragens, e um dos organizadores do Cineclube da Fundação. Em 2024, foi curador do Festival Nicho Novembro (SP) e, em 2025, atuou na assistência curatorial de curtas da 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes (MG).
Felipe Karnakis é curador, programador e produtor audiovisual. Integra a equipe de curadoria do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, onde realiza a sessão Chama Curtas, o Cineclube da Fundação e organiza mostras, estreias e ciclos temáticos. É produtor e articulador da Cruza Criativa, iniciativa voltada para o design de audiência de projetos em desenvolvimento. Atua também nas áreas de produção e produção executiva em obras audiovisuais. Foi selecionado para importantes laboratórios voltados à difusão e distribuição cinematográfica, como o Vitrine Lab (2022) e o Locarno Industry Academy (2023).
Sobre a Chama Curtas:
Com o intuito de situar o Recife dentro do intenso fluxo de produção de curtas-metragens no Brasil e no mundo, a sessão Chama Curtas abriu uma importante janela de exibição no Cinema da Fundação Joaquim Nabuco para que essas obras cheguem até o público com uma maior frequência. O projeto, criado por Felipe Karnakis e João Rêgo, traz uma programação mensal que exibe programas curatoriais com filmes realizados no Brasil – percorrendo por produções locais e nacionais, além de trabalhos de realizadores internacionais, sejam clássicos ou contemporâneos. As sessões são gratuitas e sempre contam com debates após a exibição dos filmes.
Sobre a Ponta de Rua:
O coletivo Ponta de Rua foi fundado em 2024 pelos curadores Felipe Karnakis e João Rêgo, com o objetivo de realizar sessões cineclubistas e programas curatoriais em diferentes espaços exibidores da Região Metropolitana do Recife. Atuando em diálogo direto com os locais de exibição e seus territórios, o coletivo propõe experiências que atravessam tempos, linguagens e texturas cinematográficas, tendo o Recife e seus contextos históricos como pano de fundo. Em 2025, o Ponta de Rua já realizou exibições no Cinema São Luiz e na Livraria do Jardim.