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"Você amaria Welles tanto quanto este que vos escreve?"

Foto do escritor: Laécio RicardoLaécio Ricardo

Leciono cinema, mas pouco escrevo sobre esta arte e sua confraria de notáveis. Ou aqueles e aquelas cujas obras e fisionomias alimentam meu imaginário. Mas, esta noite, sonhei com um titã e precisava evocá-lo (pra mim, alguns sonhos têm força de oração, entendimento que me impulsiona a falar/escrever sem hesitação).


Meu encanto por Orson Welles é sincero e ambíguo: gênio-prodígio inconteste do teatro e do cinema, ele também fora uma espécie de tirano nas relações pessoais e com alguns dos seus colaboradores. Pelo menos são as informações que me chegam via alguns relatos biográficos, e que o documentário Serei Amado Quando Morrer (frase atribuída a Welles durante o imenso ostracismo enfrentado por ele em Hollywood, após concluir A Marca da Maldade) parece confirmar. Uma ambiguidade que não surpreende e nem arrefece meu fascínio: afinal, existiria algum gênio despido de contradições? E, se existir, envolto em tantas virtudes, permaneceria ele uma personalidade instigante?


Vi O Outro Lado do Vento (2018), sua obra póstuma, há alguns anos. À ocasião, perdi o fôlego e me vi obrigado a engolir as críticas negativas que vociferara contra a obra, antes de visioná-la, alimentadas por uma espécie de desdém (na verdade, a finalização do projeto Dom Quixote distante do olhar de Welles, e que resultara em algo aquém, fomentara minha resistência e desconfiança).



Mas, há algumas semanas, desejei revê-lo, junto com o documentário que lhe serve de díptico (Serei amado...), e que, apesar de didático, é a contraface da moeda que ajuda o público menos afeito ao universo de Welles a entender parcialmente o projeto final do jovem que dizia que "um estúdio de cinema é a locomotiva almejada por toda criança".


Digo "parcialmente" porque a novidade de O Outro Lado do Vento é a sua gradual impenetrabilidade. Digamos assim que o filme radicaliza a metalinguagem de F for Fake e insere elementos autobiográficos no subtexto. Exemplos diretos: Jake Hannaford, personagem interpretado por John Huston, é Welles meditando sobre a hipocrisia dos estúdios; o jovem diretor em ascensão personificado pelo cineasta Peter Bogdanovich é o próprio Bogdanovich, àquela altura o beautiful one da new Hollywood e o homem que, alguns anos depois, também enfrentaria certo ostracismo e esquecimento na indústria do entretenimento. Deixo os exemplos indiretos ou implícitos como uma piscadela para os insiders. Apenas como petisco: Claude Chabrol, diretor francês vinculado à nova onda, faz uma ponta marota; e Welles dá uma pequena alfinetada na famosa crítica Pauline Kael, a mesma que elevara Kane à condição de masterpiece.


 

Mas a obra póstuma é um objeto estranho no quebra-cabeças wellesiano, em termos estilísticos e narrativos. De um lado, a narrativa se bifurca e nunca se reencontra, tampouco cria chaves de acesso imediato para o espectador; por outro lado, o tradicional virtuosismo associado ao diretor cede lugar, pelo menos em uma das tramas, a um projeto marcado por planos curtos, sem raccord imediatos e com uso de uma edição frenética, delirante (esta opção estilística é igualmente fascinante, mas destoa da criação meticulosa evidente em Soberba, Kane, A Dama de Shanghai, dentre outros títulos).


Na trama que ocupa o restante da obra outra, a projeção do filme inacabado de Jake Hannaford (lembremos que O Outro Lado do Vento é um trabalho não finalizado de Hannaford; ops, de Welles!), nos deparamos com um filme que emula e/ou parodia certos "cacoetes" do cinema moderno europeu, notadamente a estilística associada a outro nome caro à minha cinefilia, o italiano Antonioni. E, aqui, o gênio de Welles se manifesta com uma acidez peculiar; afinal, o prodígio de Hollywood sempre debochou da deambulação de alguns personagens (mulheres neuróticas?) evidente em alguns filmes de Antonioni, do ritmo lento de A Aventura ou A Noite, do perfeccionismo obsessivo do aparente rival (Welles censurando perfeccionismos é quase uma piada). Mas Welles parodiando Antonioni ainda é um imenso ato de amor ao cinema, ao qual eu me entrego como quem segue obediente para o cadafalso.



Não deixa de ser irônico que uma produção não concluída pela escassez de recursos tenha sido finalizada e impulsionada por uma gigante do mercado de streamings. Sim, por ação da Netflix, o filme, sob os auspícios de Bogdanovich, foi concluído; e seu documentário-irmão, viabilizado para um lançamento estilo "dobradinha"... Há muitos motivos para odiar as grandes empresas de streaming, repito isso para os mais próximos. Mas, em virtude deste gesto de aparente generosidade, talvez a Netflix possa ser amada quando falir... 


P.S.: Como exorcismo e oração, prezado leitor, este texto segue num fôlego súbito e sem revisão, passional e intenso, como pede todo escrito apologético.


 

Laécio Ricardo é (ou foi) jornalista, é doutor em Multimeios pela Unicamp e professor da UFPE. Apaixonado por gatos, tem convicção de que é cearense, não obstante pistas contrárias; e adora o mar, apesar da epiderme albina. E prefere uma mesa de amigos a uma extensa família.

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