"Tubarão" aos cinquenta: uma revisão crítica
- Fernando Figueiredo

- 19 de nov.
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I. Provas críticas de estreia
Este ano, Tubarão (Jaws, título original) completa cinquenta anos. Diante da imensidão de ensaios e tratados sobre o primeiro blockbuster do cinema, o que interessa no presente texto é a sua prova crítica de estreia: uma breve revisão que tenta reconstruir como alguns autores pensaram a obra na época de seu lançamento, para perceber de que modo certas “escolas críticas” atravessaram a história da cinefilia. O caminho fará convergir, e sobretudo, friccionar, três vozes distintas: a americana, a francesa e a luso-brasileira. As críticas aqui analisadas são: nos Estados Unidos, Roger Ebert (Jaws, Chicago Sun-Times, 1975) e Pauline Kael (Jaws, The New Yorker, 1975). Na França, Serge Daney (L’écran du fantasme, Cahiers du cinéma, 1976) e Alain Garsault (D’un requin et des hommes, Positif, 1976). Em Portugal, João Bénard da Costa (Jaws, Cinemateca Portuguesa, 1975), e no Brasil, Ely Azeredo (Peixe?, Jornal do Brasil, 1975).
II. A crítica norte-americana
Nos Estados Unidos, os críticos parecem se preocupar mais em descrever do que teorizar ou estender a experiência fílmica. Roger Ebert escreve seu texto pela ótica do enredo “contado com brilhantismo”. Para ele, Jaws é “um grande filme de aventura”, sem a violência gratuita das produções similares do período. O que o convence não é a concepção mecânica do monstro, embora o tubarão o impressione, e sim a maneira como Spielberg nos faz gostar das pessoas antes de submetê-las a obstáculos e conflitos. A eficácia da obra está em tornar os personagens humanos em uma narrativa arquetípica. Essa ideia nasce da economia do visível, que se traduz em uma decupagem transparente.
Pauline Kael, por sua vez, acentua a vibração sensório-retórica do filme e a sua gramática de gênero. Ela observa como a convivência entre os homens reencena, com ironia, o heroísmo machão - “Shaw esmaga uma lata de cerveja; Dreyfuss satiriza o gesto esmagando um copo de Styrofoam” - e celebra a mistura de comédia e terror, riso e pânico, sustentada por um ritmo de montagem traiçoeiro: “talvez o filme de terror mais alegremente perverso já feito”. O universo masculino que o filme coloca em cena encontra, nas mandíbulas do tubarão, uma força resistente e reguladora, capaz de devolver o jogo viril à escala do perigo real.
Em conjunto, a recepção americana recusa a sobrecarga alegórica e reconhece em Jaws um cinema de relato: narrativamente bem estruturado, legível na construção do suspense e popular no melhor sentido do termo.
III. A crítica francesa
Em um dos textos decisivos e fundamentais sobre Jaws, Serge Daney desconfia do dispositivo e desloca o debate do plano para a sua moral: “se há violência, não haverá pornografia”. Nessa chave, segundo o crítico, Spielberg faz um “cinema fascista”, isto é, uma máquina de adesão que suspende o sexual para instaurar uma confraria homossexualizante que reduz o mundo a dois pontos de vista, “o do caçador e o de quem é caçado”, e organiza o pânico para validar a contraviolência pública. Na leitura da Cahiers, a violência encenada é fonte de adesão e de prazer ao espectador. Na sequência inicial, após uma reunião juvenil regada a álcool e drogas, uma jovem despe-se, entra no mar e desaparece sob o ataque do tubarão (que não vemos); a partir daí, as relações sexuais cessam até que a “fera cerebral” seja eliminada. Os “três homens em um barco” substitui as relações sexuais e condensa a pedagogia do filme-catástrofe: o desejo de retorno à normalidade. O trio, um proletariado que não se comporta bem em sociedade, um universitário de classe média e um policial, não enfrenta apenas o tubarão, mas uma massa de banhistas inconsequentes e a autoridade corrupta, cenário que compõe um diagnóstico mais político do que formal.
Na Positif, Alain Garsault reforça que Jaws prolonga “a crônica das obsessões da América” (que o filme policial já havia iniciado). A proximidade do 4 de Julho (Dia da Independência dos Estados Unidos) não é por acaso, é a moldura cívica que torna verossímil o salvador da pátria: Brody (Roy Scheider), o homem médio, vulnerável (família em risco, medo da água), pressionado (prefeito, comércio), mal pago e, ainda assim, lúcido e obstinado, reconquistando a natureza em prol do bem-estar da comunidade, como um pioneiro americano tardio. Ao seu lado, Quint (Robert Shaw) encarna o aventureiro solitário; e Hooper (Richard Dreyfuss), o cientista dotado de conhecimentos técnicos e munido de equipamentos sofisticados. O primeiro é obsoleto; o segundo, insuficiente. Recai sobre Brody a tarefa de ser o herói.

Para Garsault, Jaws é sobre o combate do homem moderno contra uma natureza supostamente domesticada que, no entanto, retorna como força ativa e hostil. Essa natureza feminina - o mar que recusa o homem e o reduz a carne, negando sua humanidade e masculinidade, conduz o drama em torno da sobrevivência. As mulheres quase não existem, salvo como figuras maternas ou vítima inaugural (castigada por sua liberdade). Já os homens são definidos por suas funções, não por sua psicologia.
No âmbito da discussão do gênero cinematográfico, Garsault sustenta que a mise-en-scène impede a passagem total ao fantástico: Spielberg conserva à ação um caráter documental, e à encenação, um caráter descritivo. O estilo, fundado em enquadramentos reiterados e ritmo equilibrado, não busca lirismo nem exaltação, produz antes um espetáculo comedido e calculado. Se, para Daney, o tubarão é a atualização alucinatória e inimigo interior (“tudo o que goza”), para Garsault o filme reativa um medo arcaico combinando dois vetores: a da transformação aberrante de um animal já odiado e a conduta aberrante de um animal que se volta contra a ordem do mundo, como em Os Pássaros (1963), de Hitchcock.
IV. A crítica luso-brasileira
Em Portugal, João Bénard da Costa parte do tempo longuíssimo do medo: “antes de tudo - antes de antes de tudo - o mar mete medo”. Para ele, o que une os personagens, não é apenas o inimigo visível, mas o elemento que as excede - o mar como volume e destino. Quint é engolido num ajuste de contas tardio; Brody, que sempre se imaginou morrer afogado, é quem mata o monstro. Jaws progride “sob a figura do suspense” até a formação do trio de protagonistas, momento em que “intervém a dimensão Moby Dick”, enquanto a alternância de pontos de vista, desde o prólogo subjetivo, instala a “visão demoníaca” do predador. Em diálogo com Kael e Daney, Bénard também se rende às sugestões psicanalíticas da libido: “o tubarão é o demônio que devora em êxtases de conotação sexual”.
No Brasil, Ely Azeredo segue outro caminho, observando a perda da vocação abertamente moby-dickiana, que impediria a passagem ao terror metafísico de Os Pássaros. O brasileiro prefere sublinhar a humanidade envolvente, o humor supérfluo e a eficácia da sugestão. Segundo ele, Jaws é um “thriller insólito” em que “uma força destrutiva, quase invisível, desafia a inventiva e a coragem do homem”. A direção de Spielberg coloca o espectador “frente a uma situação aterrorizante”. O tubarão, figura imprevisível e “quase onírica”, criado e filmado sob o império do método, torna-se menos um fetiche do aparato e mais uma ideia de encenação.

V. Cinquenta anos depois
A crítica americana honra a eficácia narrativa e o valor dos personagens; a francesa se divide entre a leitura formalista-cívica da Positif e a suspeita ideológica dos Cahiers; a luso-brasileira combina a moldura simbólica do mito (Bénard da Costa) com um pragmatismo de ofício (Azeredo).
Cinquenta anos depois, Jaws deve ser tratado menos como origem de um modelo industrial e mais como um caso paradigmático de encenação a serviço de um suspense que organiza a atenção do espectador. Na sequência em que Brody vigia a praia, o suspense não nasce da aparição do tubarão, e sim de uma sintaxe de encenação que disciplina o olhar plano a plano. O horizonte marítimo funciona como régua de tensão e medida da expectativa, enquanto as crianças à sua frente, somadas aos banhistas que cruzam o quadro, filtram a linha de visão e retardam sua orientação espacial.
O famoso dolly zoom não é mero adereço de estilo, mas o ápice de um processo que já vinha estreitando seu campo visual. Antes desse recurso ótico, o filme educa nosso reflexo perceptivo com operações não-diegéticas discretas, em que apitos de salva-vidas e vozes ao longe funcionam como pontes rítmicas entre os eixos de ação. Mesmo os sustos pontuais obedecem à lógica: preparação e condução do olhar, ruptura breve e retorno imediato ao regime de espera.
A coerência desse sistema atravessa todo o filme, inclusive nos planos subaquáticos que simulam onisciência apenas para melhor manipulá-la. Assim, em Jaws, o suspense não se sobrepõe à mise-en-scène; ele é seu efeito necessário, consequência de uma coreografia de tempo, espaço e som com precisão quase musical.
REFERÊNCIAS CRÍTICAS
AZEREDO, Ely. Peixe?. Jornal do Brasil, Caderno B, Rio de Janeiro, 31 de dezembro de 1975, p. 2.
BÉNARD DA COSTA, João. Jaws. Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1975.
DANEY, Serge. L’écran du fantasme (2). Cahiers du cinéma, Paris, nº 265, mar./abr. 1976, p. 15-16.
EBERT, Roger. Jaws. Chicago Sun-Times, Chicago, 1 de janeiro de 1975.
GARSAULT, Alain. D’un requin et des hommes (sur Jaws). Positif, Paris, nº 179, mar. 1976, p. 35-38.
KAEL, Pauline. Jaws. The New Yorker, New York, 1975.




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