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"Sing Sing": No palco, na vida

Foto do escritor: Luiza NevesLuiza Neves
Divulgação / Diamond Films
Divulgação / Diamond Films

“[...] between ‘reality’ on the one hand, and the point where

the mind strikes reality, there’s a middle zone, a rainbow edge

where beauty comes into being, where two very different surfaces

mingle and blur to provide what life does not: and this is the

space where all art exists, and all magic.”

– The Goldfinch, Donna Tartt


Recentemente, em um episódio do podcast da A24, Harris Dickinson e Andrew Garfield viram-se diante de um leve dissenso: após o primeiro proferir que, enquanto atores, não estavam fazendo nada tão grande quanto salvar vidas, Garfield discorda. Ele afirma não saber contar as vezes em que sua vida foi salva por algo como uma música ou uma peça de teatro, por exemplo. Ainda que o debate seja extenso – porque a própria ideia de necessitar justificar algo maior ou, que seja, utilitário no campo da arte já repercute infinitas discussões – e não configure o propósito deste texto, o embate pareceu ilustrado, de certa forma, em Sing Sing (2024).


O diretor Greg Kwedar tomou conhecimento do RTA (Rehabilitation Through the Arts, em inglês) por acidente, em 2016, quando frequentou uma prisão de segurança máxima nos Estados Unidos para ajudar um amigo que produzia um documentário lá. Trata-se de um programa fundado em 1966 por Katherine Vockins, que promove atividades diversas aos detentos e opera em dez prisões nova-iorquinas, dentre as quais o presídio de Sing Sing. É a partir dessa premissa que o roteiro nos coloca frente a frente com Divine G (Colman Domingo), recitando falas de Sonho de uma Noite de Verão, peça do dramaturgo William Shakespeare, na cena de abertura do longa. Logo, torna-se perceptível uma ideia: aquele é um protagonista movido por propósitos que precisam ser claros e, dentro daquele ambiente, o grupo de teatro do RTA é sua maior paixão.


Prestes a darem início a uma nova produção, os detentos, sob a orientação do diretor Buell (Paul Raci), precisam recrutar novos participantes para compor seu elenco e decidir a nova peça a ser ensaiada. Os veteranos são apaixonados, empolgados, claramente comprometidos com o ensejo coletivo da dramaturgia. Quando aceitam um novo membro, apelidado Divine Eye (Clarence Maclin), as dinâmicas e engrenagens começam a mudar. O personagem de Domingo é um líder tácito, que assume a posição de forma modesta, mas impositiva. Tenta esconder o desgosto por ser contrariado, como que eternamente fugindo de possíveis conflitos. Divine Eye não faz questão de parecer mais agradável a ninguém, e sua presença cética nos encontros causa um desconforto generalizado, a princípio. Todavia, ao ousar sugerir que a próxima peça seja uma comédia tida como mais “pastelão”, abre espaço para que todos os homens comecem a sugerir suas maiores fantasias teatrais – viagens no tempo, faroeste, múmias e, por que não?, o solilóquio de Hamlet.


Divulgação / Diamond Films
Divulgação / Diamond Films

Acatadas as vontades a serem incluídas, sem discriminações, a peça é então escrita por Buell. E é do momento de suas audições que Sing Sing parece finalmente estabelecer seu ritmo e definir sua cadência entre os personagens. A surpresa de Divine G ao descobrir que não seria o único competindo pelo papel de Hamlet é evidente, mais ainda quando percebe que a concorrência vem justamente daquele que julgava em silêncio. Domingo e Maclin trabalham de forma brilhante o tempo todo, mas é enquanto condutores da percepção alheia que parecem se destacar mais. Os dois Divines sustentam lados diferentes da mesma moeda: G, condenado injustamente, tem a certeza de que seus dias ali dentro estão contados, de que pertence ao mundo lá fora; Eye, por sua vez, é responsável por sempre questionar qual espaço ocuparia na sociedade se um dia viesse a ser libertado. Não faria mais sentido continuar em Sing Sing, onde exerce seu domínio e conhece sua hierarquia? A ponte entre os dois parece ir se tornando mais curta em meio aos ensaios, porque, não obstante os eventuais embates, genuinamente parecem absorverum ao outro.


Em uma linguagem que aparenta buscar constante leveza, tendo um apreço pela câmera na mão e uma espontaneidade muito natural em seus diálogos, quase toda a carga emocional do filme de Kwedar descansa no saber que a maioria dos atores ali estão, na verdade, se interpretando. O foco do longa-metragem é menos em suas histórias individuais e mais na mecânica das relações dentro dos ensaios, mas ainda abrindo espaço para performances verdadeiramente bonitas. Quando falamos de atuação, sempre é voltando à ideia de como entrar em determinado personagem de sentimentos alheios àqueles do ator; aqui, de repente parecia que interpretar a si, sobretudo em posições marginalizadas, era o papel mais desafiador de qualquer um. O destaque, sem sombra de dúvida, é o próprio Clarence “Divine Eye” Maclin, condenado a 17 anos de cárcere por roubo armado quando tinha 29 anos. Sem questionar de forma necessariamente enfática todas as mazelas do sistema prisional americano, Sing Sing na verdade opta por abrir espaço para determinadas histórias, deixando que o subtexto trabalhe mais nesse sentido.


Divulgação / Diamond Films
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É, inclusive, no momento em que se solta das entrelinhas e tenta trazer mais questões à margem que o filme perde um pouco a mão em seu clímax. Justamente por conectar o espectador ao grupo e não tanto a cada indivíduo, o impacto emocional em determinados entraves e conflitos pessoais torna-se enfraquecido. Quando Divine G se frustra e parece perder a esperança no próprio sentido da arte em sua vida, o discurso soa artificial demais, dramatizado de maneira estrangeira ao resto da obra. Apesar de sua performance estelar, o próprio protagonista parece pouco convencido com sua descrença repentina. O roteiro de Kwedar e Clint Bentley não sustenta de forma amplamente satisfatória esse momento de explosão, e é somente aqui que o próprio longa aparenta querer se questionar para, depois, justificar-se em sua mensagem final.


Pouco importaria reafirmar sua força dessa forma; o impacto do filme se consagra em seus créditos, ao intercalar cenas reais dos detentos interpretando a peça construída com seus letreiro. A peça era um propósito em si, que moveu aqueles homens de tal maneira. A arte move conforme deve mover, sem dever precisar justificar um propósito maior. Talvez não salve vidas, no sentido objetivo da ideia, e nem deve ser feita com tal intuito. Mais do que tentar explicar quais assuntos emocionam mais ou menos, vale apenas o aceitar daquelas emoções, o ato de abraçá-las. É o que enfatiza, na verdade, todo o sentido da vida, que, enfim, não precisa justificar o grande querer de ser vivida.


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