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Sentimentos além do plano

Foto do escritor: MontezMontez

Dentre os numerosos livros que podem contribuir para uma compreensão mais apurada da arte cinematográfica, um destaca-se em particular, permanecendo inigualável em qualquer categoria que se possa atribuir às leituras: Esculpir o Tempo, de Andrei Tarkovsky. Naquelas páginas, entre tantos pensamentos sobre seu trabalho, o cineasta soviético reflete sobre a existência humana e a arte em geral. Seus pensamentos sobre a imagem, sobre a espiritualidade, sobre o tempo imbricam-se à feitura fílmica, mas um trecho, em especial, ainda nas primeiras páginas, é seminal para o entendimento do que é fazer cinema. Antes, rapidamente, o contexto desse trecho: após a exibição de O Espelho [Mirror, 1975], Andrei Tarkovsky relata sobre algumas das cartas que recebeu de espectadores. Entre tantas que desejavam entender sobre o que é o filme ou, ainda, pedindo para que ele escrevesse mais para os jornais, uma chama a atenção: a de uma operária de Novosibirsk.


A mulher fala sobre um novo tipo de linguagem, uma nova forma de comunicação: a que é feita via sentimentos e imagens que, segundo ela, poriam por terra as barreiras entre o espectador e o que ele vê na tela. Através das emoções — algo que o psicólogo Hugo Münsterberg já havia escrito sobre o cinema — haveria a eliminação dos obstáculos e as pessoas “[...] encontrar-se-iam nos lados opostos de um espelho, nos lados opostos de uma porta. A tela se amplia, e o mundo, que antes se encontrava separado de nós, passa a fazer parte de nós, tornando-se uma coisa real…”. São poucos os filmes que conseguem trazer a mesma sensação que essa operária de Novosibirsk descreveu acima: essa dissolução do espelho cinematográfico e o transbordamento de sentimentos pela imagem. Mas quando isso acontece, é avassalador. É o caso de Vidas Passadas [Past Lives, 2023], de Celine Song. Isso ocorre porque a cineasta une dois pontos muito bem levantados pela operária: a imagem e o sentimento.



Quem são aquelas pessoas uma para a outra?, questiona uma voz quando o filme abre. O espectador, como um pintor diante sua tela, detém apenas a moldura, a promessa de um retrato por se desvendar. A imagem, por ora, é uma paisagem desabitada, um cenário nu aguardando o toque que desvelará segredos. Como um quadro que respira em espera, o vazio clama por pinceladas de emoção e narrativas que se entrelaçam. Até que um olhar parece nos flechar: é o de Nora (Greta Lee). Através dela, entramos em contato com um amor de infância, separado por questões além das suas possibilidades e que, devido às redes sociais, se reencontram anos depois. Os caminhos que ambos seguiram, ainda crianças, novamente se cruzaram. A emoção do reencontro, ainda que por uma chamada de vídeo, é perceptível. São os olhos que se enchem de felicidade e parece que qualquer afastamento cairá por terra. Dias e noites e a única voz que Nora e Hae Sung (Teo Yoo) conseguem ouvir e pensar é uma do outro.




Celine Song é muito hábil ao construir em torno desses encontros e desencontros um sentimento que transpassa as possibilidades da imagem. Quando Nora está em cena, o espectador logo é levado a pensar em Hae Sung e vice-versa. A paisagem, testemunha silenciosa, se torna a tela em que seus destinos se desenham. De esculturas infantis que espelham promessas de eternidade a construções adultas onde corpos se afastam, a arquitetura revela a metamorfose do amor. Na narrativa da vida, o encontro que outrora era predestinado agora enfrenta as encruzilhadas do incerto. As esculturas de rostos que se olhavam na inocência da infância cedem lugar a corpos que olham para direções opostas. O abraço de Nora e Hae Sung, entrelaçado de saudade e esperança, é a última página de um capítulo que provavelmente se encaminha para uma despedida. O respiro profundo dele após o abraço, enquanto a câmera caminha de um rosto a outro, parece desenhar o alívio e a tensão que encapsula aquele momento.


E então vem a imagem, aquela que parece transbordar os sentimentos, aquela que possivelmente faria a operária de Novosibirsk repetir as mesmas palavras que escreveu para Tarkovsky. No metrô, em silêncio, Nora e Hae Sung se olham com sorrisos contidos e olhos brilhantes. Song corta para um plano simples: as mãos de ambos segurando no ferro do transporte. Seus corpos se movimentam, como se fossem se encontrar, mas se desencontram. É de forma muito delicada que Song permite que os dois mantenham um diálogo em silêncio, mas que os afetos sejam sentidos. Muito é dito a partir dali, sobre o passado e o presente, mas os sentimentos ainda parecem tímidos. A primeira noite após o reencontro chega e Hae Sung, no seu quarto de hotel, observa a cidade iluminada. É uma imagem que pode lembrar os filmes de Edward Yang, trazendo para imagem o momento da quietude noturna, aqueles indizíveis, que nos assombram nos momentos de solidão. Após o segundo reencontro, tudo é posto sobre a mesa. A providência permitiu que Nora e Hae Sung se vissem e se tocassem mais uma vez.




É nesse momento de despedida, onde os vidros se quebram e os limites se dissolvem, que a magia do cinema se revela como uma dança entre imagem e sentimento. Nora e Hae Sung, naquele abraço que transcende o tempo e o espaço, se tornam a essência da poesia visual de Celine Song. A cineasta, como uma arqueóloga das emoções, escava através de suas imagens, revelando camadas sentimentais. No abraço que se estende como um capítulo interminável, a superfície da imagem é escavada. A cineasta-escavadora revela a poesia da imagem e tudo se torna real, transformando o ato simples em uma escultura de emoções esculpidas. Assim, Celine Song, em seu primeiro longa-metragem, não apenas conta uma história; ela nos convida a cavar, a explorar, a sentir. Suas imagens não são apenas visíveis, são palpáveis, e nesse abraço que parece ecoar pela eternidade, a magia do cinema se torna uma experiência visceral, onde a fronteira entre espectador e protagonistas se dissolve na emoção compartilhada.


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