"Ritas": Um caleidoscópio de lentes plurais
- Luiz Gustavo
- 4 de jun.
- 3 min de leitura

No meio da tela, circunscrita sob as bordas do quadro reduzido, Rita Lee, já idosa, nos olha e se olha, com a lente na mão, direcionada para si, para nos dar um aviso: resolveu mudar a data de seu aniversário, de sua gênese, para o dia 22 de maio. Sua presença e palavras reivindicam um renascimento da imagem de si, constituída aqui pelo seu olhar direcionado à câmera frontal, como num espelho. Temos um fragmento reflexivo que conduz a imagem e as palavras, mas que também serão conduzidas, ao longo do filme, por meio da pluralidade de lentes que já a olharam durante toda a sua carreira. Desse modo, o diretor Osvaldo Santana e a co-diretora Karen Harley concebem um caleidoscópio de Ritas que passeiam entre a intimidade do instante, de um olhar que encara a si próprio em imagens caseiras, e a existência de um passado, registrado em arquivos televisivos.
Em ambos os modos distintos de imagens, temos uma mediação subjetiva de Rita Lee, que intercede modos de ser imagéticos diversos. Seja por meio de imagens em primeira pessoa, da justaposição na montagem entre imagens caseiras e imagens de arquivo ou por meio de visualidades plásticas que ilustram suas experiências. Podemos observar o primeiro caso, por exemplo, nos momentos iniciais do filme. Partilhamos com Rita do olhar subjetivo sob os seus pés descalços que percorrem as folhas de relva de seu jardim, enquanto ela narra um poema. A existência dessas imagens depende de sua gestualidade e da partilha da sua retina sobre o mundo conosco. Vivemos com ela o instante de sua existência na imagem.

Esse e outros momentos capturados com a câmera na mão geram uma intimidade por conta da mobilidade corporal do aparelho e da proximidade da lente com os objetos filmados. Em algumas passagens do filme, esses momentos servem como modo de expressar um ponto de vista, sob o mesmo tema, que dialoga com um fragmento passado, contido em um vídeo de arquivo. Como ocorre, por exemplo, em uma passagem na qual Rita Lee discursa em uma entrevista na televisão sobre defender os direitos dos animais. Em paralelo a isso, temos, na montagem, uma mudança no comportamento da objetiva quando esta volta a estar do ponto de vista subjetivo de Rita e não mais de uma linguagem televisiva.

Rita, agora, partilha conosco os animais e a visão destes que habitam ao redor de sua casa. Dando acesso a estarmos diante de instantes banais e íntimos que expandem a percepção da personagem obstinada, corajosa e rebelde registrada nos arquivos televisivos. Rita existe entre essas imagens do presente, capturadas amadoramente, ingênuo, e nessa efervescência de um passado, que é instável e reelaborado por meio de sua narração. No entanto, essa não somente se debruça sobre as imagens para revelar algo oculto contido nelas. Ao invés disso, também temos a utilização da palavra para gerar imagens por meio de uma fabulação visual que contorna os espaços vazios por meio de desenhos gráficos. Esses dão movimento às palavras de Rita e produzem uma subjetividade por meio da fantasia, que tornam o seu cabelo amarelo como o sol ou desenham uma sala de executivos conservadores. A descrição dá lugar à invenção.
Dessa forma, ao longo do filme, temos uma variabilidade da subjetividade por meio de mutações imagéticas em/com Rita, que concebem uma existência estética com modos de ver distintos, como em um caleidoscópio de lentes plurais de Ritas.
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