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Escritas de si e do outro em "Retratos Fantamas"

Foto do escritor: MontezMontez


No âmbito artístico, a representação de si mesmo sempre despertou grande interesse. Parece que a natureza autobiográfica dessas expressões, seja na literatura, na pintura ou no cinema, oferece a oportunidade de explorar a concepção de identidade e, ao mesmo tempo, analisar uma trajetória de vida. Quando Michel de Montaigne, autor de "O Livro do Eu", declarou que ele não retratava o ser, mas sim a passagem, ele destacou uma característica fascinante das narrativas em primeira pessoa: os eventos narrados são diversos, mutáveis e muitas vezes contraditórios, às vezes até ficcionalizados. Aqui, a palavra "ficcionalizados" não implica que a ficção seja o oposto do real, uma mentira, mas sim que ao contarmos uma história, estamos criando a partir dela. Em outras palavras, o ato autobiográfico se torna um ato performático. Com o surgimento da fotografia e do cinema, essas ideias se tornam tangíveis, permitindo brincar com a passagem do tempo.


O cinema tem o poder de congelar, retroceder e analisar uma imagem em profundidade, o que nos faz refletir sobre nossa própria subjetividade e, por extensão, sobre o mundo. Esta introdução busca capturar estabelecer uma base sólida para explorar os caminhos que Kleber Mendonça Filho escolhe em Retratos Fantasmas (2023). Este é um projeto pessoal, mas de forma alguma ensimesmado. O cineasta transforma seu longa-metragem em um estudo da imagem, não apenas como arquivo, mas como objeto de contemplação e manipulação. Kleber Mendonça Filho exibe um olhar vigilante que nutre sua narrativa e estilo cinematográfico, fluindo entre a subjetividade e a objetividade nas três partes em que o filme se divide.



I

Nada é mais íntimo do que o interior de uma casa. Kleber Mendonça Filho abre as portas de seu apartamento não apenas como cenário para seus filmes, mas como um ponto de partida para sua visão do mundo além da janela. As modificações ocorridas ao longo das décadas refletem as mudanças em sua vida e, inevitavelmente, ecoam pelas ruas do Recife. Seu lar está repleto de afetos, memórias e arquivos. Cada cômodo é filmado e reimaginado, transcendendo a realidade para se tornar cinema. Kleber deixa claro que sempre foi apaixonado pela sétima arte, e seu apartamento é um reflexo disso. Ao entrelaçar, na montagem, o interior de seu apartamento com cenários cinematográficos, ele faz do cinema uma forma de manipulação do espaço-tempo. Enquanto narra sua história, Kleber estende sua vida como uma extensão de sua paixão pelo cinema. Ao cruzar a porta do apartamento e caminhar pelas ruas do Recife, todos esses elementos se tornam tangíveis.


II

Seria simplista chamar Retratos Fantasmas de uma "carta de amor ao cinema". Essa afirmação, além de óbvia, reduziria o filme a algo superficial, quando na verdade, sua riqueza reside na exploração da imagem como um meio de resgate e documentação. Kleber questiona constantemente cada imagem, buscando nelas pistas para desvendar um pedaço de História. O arquivo fílmico apresentado no filme representa uma abertura nas teias do cotidiano, proporcionando uma nova perspectiva. Nele, encontramos momentos da vida de pessoas comuns, frequentemente negligenciados pela narrativa histórica. O arquivo não registra apenas os feitos grandiosos da história, mas também os detalhes simples e os eventos dramáticos da vida cotidiana. O cinema não é composto apenas pelas estrelas na tela, mas também pelos espectadores que se perdem nas histórias projetadas. Cada cinema de rua é mais do que um lugar de projeção; é um espaço de encontro, formação pessoal, descoberta e redescoberta do mundo.



Se Kleber começa com sua história pessoal, ele a expande para incluir todos aqueles que compartilharam suas experiências e emoções. No contexto da projeção-identificação cinematográfica, somos imersos em um mundo rico em texturas. O momento mais marcante dessa experiência é quando os letreiros dos cinemas parecem sussurrar mensagens, revelando o arquivo como um coração pulsante e emocionante, pronto para ser explorado e amado. Um cinema de rua no centro de uma cidade como Recife pode ser equiparado a órgãos vitais, onde o público compartilha um coração coletivo, enquanto as saídas dão em pontes que levam a diferentes destinos. Assim, Retratos Fantasmas fala não apenas sobre o cinema como arte, mas como uma força motriz que move nossas emoções.


III

Na cena final, após sair de uma das salas de cinema mais importantes de Recife, Kleber pega um carro de aplicativo. Durante um diálogo encenado, o motorista, interpretado por Rubéns Santos, comenta com Kleber que ele tem o poder de desaparecer. Até aquele momento, o filme havia explorado o cinema como parte integrante das vidas das pessoas, um reflexo do processo histórico e econômico. Nesse momento, a arte cinematográfica interfere diretamente, permitindo que o motorista realmente desapareça, lembrando-nos dos truques mágicos que deram origem à projeção cinematográfica. Esses truques foram responsáveis por transformar a película em um objeto de fascinação dos dispositivos de visualização solitária para o cinematógrafo projetado. Fica evidente que Retratos Fantasmas é sobre o sujeito que se impregna de mágica e fantasmagoria, afinal, das sombras surgem as imagens e delas, os sentimentos.


O filme está disponível na Netflix Brasil.



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