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Quão grande é Bob Dylan em “Um Completo Desconhecido”?

Foto do escritor: João Mauro CursiJoão Mauro Cursi
Foto: Divulgação / 20th Century Studios
Foto: Divulgação / 20th Century Studios

Um Completo Desconhecido (2024, James Mangold), obra sobre os anos iniciais da carreira de Bob Dylan, não se limita ao padrão das cinebiografias sobre músicos que já constituem hoje um subgênero do cinema hollywoodiano, mas isso não implica grande inventividade. Mantendo um estilo mais clássico, o filme não possui a extravagância de um Elvis (2022, dir. Baz Luhrmann) ou de um Rocketman (2019, dir. Dexter Fletcher) — ao contrário, aposta em uma direção mais contida que busca investigar a forte persona do Bob Dylan a partir da sua relação com o público e com os ambientes que frequenta.


O longa, como já acenado, não se propõe a uma biografia extensa, abordando um breve período não contínuo de 1961 a 1966, que correspondem, respectivamente, ao início e a um ponto de virada na carreira do músico. A divisão temporal também divide a abordagem do filme em duas partes: em um primeiro momento conhecemos um Dylan recém-chegado a Nova Iorque, onde os ânimos do jovem cantor se confundem com a efervescência cultural da metrópole, cujo retrato se aproxima muito dos contornos boêmios pintados sobre a cidade de Paris nos romances de meados do século passado; na segunda parte da obra, vemos um Dylan mais cansado e incomodado com a fama: o ambiente com o qual se misturava emocionalmente agora o oprime com a pressão do sucesso e o desassossego dos fãs que o atormentam nas ruas. Primeiro, vemos um universo que influencia e resulta na carreira do artista; depois, vemos um fundo que já sofreu transformações por meio das suas canções.


No entanto, a primeira parte, que, a um olhar rápido, parece o retrato de um mundo no qual Bob Dylan se insere e tira dali todas as suas influências, na verdade se revela como um ambiente criado também a partir da personalidade do cantor-protagonista, que influencia o mundo em igual medida. Ou não é o caso que a representação romântica da cultura estadunidense também não é uma extrapolação das canções folk que marcam o início da carreira de Dylan? O que tento deixar claro é que o filme, na verdade, entende a figura do cantor, não só como centro temático, mas como ponto de partida de todo o estilo da obra. Isso fica bem evidente com a escolha das músicas tocadas, que frequentemente estão de acordo com uma percepção histórica e pessoal do artista em relação aos seus arredores, de modo que as canções aparecem de forma muito pouco imaginativa, simplesmente traduzindo a sensação do momento em tela sem complementá-lo expressivamente de forma alguma. Não é por acaso que Blowin’ in the Wind e Masters of War são performadas em meio à encenação desesperadora da Crise dos Mísseis e que Like a Rolling Stone corresponde a um momento de virada da vida pessoal e profissional do compositor, assim como as músicas românticas são usadas no filme de forma que refletem diretamente os relacionamentos do cantor. Dessa forma, toda a trama e o estilo da obra partem da figura histórica do Bob Dylan, raramente fazendo o caminho inverso; disso, segue-se o estabelecimento de uma personagem inabalável capaz de ditar o ritmo cultural ao seus arredores.

Foto: Divulgação / 20th Century Studios
Foto: Divulgação / 20th Century Studios

Com essa abordagem, chegamos a um fato incontornável: a atuação de Timothée Chalamet. O ator oferece uma visão do Bob Dylan sem muitas nuances, alternando entre uma representação mais sólida e autoconfiante do cantor e uma performance mais emocionada que confessa filosofias baratas às suas amantes. A primeira parte funciona melhor na medida em que dialoga com a figura inabalável construída sobre a persona do cantor, enquanto a segunda parece mais uma sátira que, por não ser tratada de forma cômica, soa ingênua e falsificada. O filme se sai relativamente bem quando enquadra Dylan de costas para a sua plateia, com o foco todo no canto — essa é uma abordagem incomum em filmes sobre músicos, que geralmente mostram o público levado à êxtase em sintonia com a performance musical. Quando Chalamet se vira para o fundo do palco, é claro que se cria uma divisão entre artista e público, e o filme escolhe manter-se no artista. Talvez seja essa a direção que o filme toma e melhor explora, mas a repetição enfada a pouca fuga das normas que a obra se arrisca em tomar.


Apesar de fugir um pouco do padrão das cinebiografias, o filme ainda fica limitado a alguns clichês, especialmente no que diz respeito ao descaso do protagonista com seus relacionamentos, que é feito de forma genérica e são os momentos em que o filme mais pesa na adequação ao padrão. Chega a soar um tanto cínico o retrato das mulheres que se relacionam romanticamente com o cantor (especialmente Suze Rotolo e Joan Baez) como figuras mais independentes quando, dramaticamente, não são usadas — e esse é o termo, pois, ao buscar a adequação a um padrão visado, as personagens (e seus demais elementos) se tornam ferramentas — sem outro propósito senão para a construção do personagem principal.

Foto: Divulgação / 20th Century Studios
Foto: Divulgação / 20th Century Studios

O filme está pouco preocupado com o passado do cantor, que ele notavelmente inventa, ou com o futuro, que só aparece brevemente descrito em notas ao fim do longa. Pouco importa o nascimento, vida e eventual morte de Robert Zimmerman, o filme escolhe tratar exclusivamente do cantor-compositor. Essa escolha, por um lado, permite uma abordagem que explora bem a relação mais entediada do artista com o público, mas também limita os poucos passos que a obra dá em direção ao lado mais pessoal do cantor e impossibilita o pretensioso retrato de Joan Baez, Pete Seeger, Woody Guthrie e todos que o cercam na medida em que tudo é condicionado pela persona do Dylan.


Em suma, o grande eixo principal da obra parece ser a construção de Bob Dylan enquanto um artista capaz de se autoafirmar em um contexto de transformações socioculturais incontornáveis. A partir da personagem principal, o diretor James Mangold constrói um mundo que, mesmo combativo, sempre cede às vontades do cantor. Por um lado, essa abordagem possibilita a criação de uma figura sólida e forte, mas, quando isso é extrapolado para os demais dramas que compõem os relacionamentos interpessoais de Dylan, a notável canalhice jovem do artista, que o filme faz questão de retratar, parece se inocentar pela constante afirmação enquanto um artista culturalmente revolucionário e, ao fim da obra, sensivelmente livre em suas viagens de motocicleta pelo interior dos EUA. O abandono de alguns clichês não impede o apego a outros e, por mais que não se enquadre ao padrão exato da indústria, o filme ainda busca uma média dramática que assola Hollywood e se mostra dissonante da grandiosa figura que busca construir a todo custo.


1 Comment


Adorei a crítica!

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