Tudo começa com uma imagem, seja real ou imaginária, e ela está presente em cada fase da criação da arte cinematográfica. Ao negligenciá-la ou tratá-la de forma insignificante, a realização cinematográfica está fadada a perder sua vitalidade. Fica evidente, ao longo da projeção de Propriedade, novo filme de Daniel Bandeira, que o cineasta prioriza a importância da imagem como cerne da construção narrativa. Tomemos como exemplo um dos planos iniciais do filme: em um close-up, a personagem interpretada por Malu Galli está sentada diante de uma porta de vidro, enquanto, atrás dela, uma janela a separa do mar azul cujas ondas chegam constantemente à areia. Poderia ser um simples plano de apresentação de uma personagem elitista e traumatizada, mas Galli já cumpre essa tarefa pela maneira como entrega as linhas do diálogo e como seu olhar oscila entre o medo e o desconforto, simultaneamente. O que eleva a cena é justamente a forma como o quadro molda quem é essa personagem, para além do que é expresso pelo roteiro.
É por meio desse enfoque que Bandeira incorpora o cinema de gênero, uma ferramenta poderosa para comentar e questionar questões sociais quando explorado com habilidade. Em Propriedade, o cenário escolhido é uma cobertura no bairro de Boa Viagem, em Recife, uma metáfora visual da posição privilegiada e isolada da protagonista Teresa. Sua torre de segurança não apenas a protege fisicamente, mas a coloca como uma agente direta na preservação das estruturas sociais desiguais, contribuindo para a perpetuação desses modelos. Ao introduzir a personagem no plano mencionado anteriormente, o diretor consegue capturar a complexidade da protagonista, explorando não apenas sua identidade, mas também sua inserção nas dinâmicas sociais circundantes. A escolha do cenário não é apenas estética; é simbólica, representando a distância física e emocional entre Teresa e as realidades das quais ela está distante, mas sob o domínio dessas mesmas pessoas.
O mérito de Bandeira no longa reside na habilidade de articular a pulsão por comentar o processo histórico brasileiro, abordando temas como a escravidão e a luta de classes. Ao mesmo tempo, ele não deixa de reconhecer a potência do suspense e do horror como elementos fundamentais para provocar uma resposta tátil no espectador. A combinação desses elementos permite que o filme transcenda a condição de um mero veículo de crítica social ou panfleto, algo comum na cinematografia do país, que muitas vezes opta pela absorção fácil do discurso. A comparação com Bacurau (2019, dir. Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles) torna-se inevitável, de certa forma, embora ambos os filmes sejam dicotômicos. Enquanto o filme sobre a cidade que desapareceu do mapa abraça o maniqueísmo como um trunfo, o filme de Bandeira aposta na ambiguidade das relações, tornando o papel do espectador desafiador. Isso conduz a narrativa a uma pluralidade interna do grupo, em contraste com uma abordagem fixa, reducionista ou esquemática.
E a ambiguidade, algo que pode ser rejeitado por boa parte do público, é o centro de uma discussão acerca dos entrelaçamentos da sociedade atual brasileira. Ora, podemos encontrar num mesmo filme o passado, o presente e o futuro, culminando na cena que ilustra o pôster da obra e que, evidentemente, Bandeira carregou consigo na construção de sua narrativa. Após tentativas constantes de tirar Teresa de dentro de seu carro blindado, inatingível do ponto de vista externo, os trabalhadores daquela fazenda, cujas terras foram cultivadas por eles, resolvem amarrar o veículo a uma tração de gado. Em um plano aberto, enquadrando o enorme latifúndio inexplorado, observamos o que teóricos poderiam chamar de “instante pregnante”, ou seja, aquele momento que sintetiza toda a narrativa. Mas, muito além, a imagem do carro sendo carregado pelos trabalhadores explorados é uma espécie de cápsula do tempo, onde boa parte das relações de classe está representada.
É quando a comparação com Bacurau fica mais evidente: assim como o desfecho do vilão de Udo Kier é enterrado vivo, a personagem de Galli envolta em seu castelo de centenas de cavalos também é posta debaixo da terra. Se ambos representam essa ameaça escondida, mas que ainda permanece viva nas entranhas da sociedade, Bandeira aponta com mais precisão para esse futuro cíclico. A violência que abre o filme e permeia toda a narrativa, por razões distintas e muito mais complexas do que poderiam ser abarcadas num feito fílmico, permanece. Não existem dúvidas quanto ao discurso, ao que Daniel Bandeira e a equipe almejam durante o filme, mas em momento algum há uma sobreposição entre o que é dito e o que é visto. Há uma relação de simbiose entre forma e conteúdo e, consequentemente, um entendimento do cinema de gênero como esse objeto a ser fecundado de ideias e imagens. No fim, ainda pode-se ouvir o mar distante, atrás de um vidro. Mas é a areia e a terra que sedimentam. A luta de classes existe.
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