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“Os Enforcados”: a comédia de erros de Fernando Coimbra

Foto do escritor: Roger PortelaRoger Portela
Divulgação: Paris Filmes

Os Enforcados, de Fernando Coimbra, é, como o título diz, uma corda apertando-se no pescoço de seus personagens a cada minuto. Uma comédia de erros onde a violência que se inicia parece nunca ter fim.


Valério (Irandhir Santos) e Regina (Leandra Leal) são um casal de ricos no Rio de Janeiro. Ela, filha de uma família aristocrática decadente, age como uma “perua”, fazendo uso do dinheiro do marido para a reforma da casa. Ele, sócio do seu tio bicheiro, não se sente participante dos negócios, dos quais tem direito à metade. Quando ele revela à esposa que está falido, ambos se juntam para orquestrar um plano que tem tudo para dar errado: matar o tio de Valério e tomar o negócio do jogo do bicho todo para si.


Já na sua segunda cena, o filme mostra a complexidade do casal em fetiches sexuais extremos: Coimbra nos apresenta, principalmente, uma complicada relação de poder e violência. Em diversos momentos, Regina é uma Lady Macbeth jocosa, carioca, metade Shakespeare, metade Nelson Rodrigues. Há um humor de sátira na sua personagem, como um comentário ácido para essa classe aristocrática decadente que fará tudo que é possível para manter-se no topo. Leandra Leal atinge um ponto de afetação único que transforma seu humor — principalmente nas cenas com sua mãe, vivida por Irene Ravache — mais que trágico e em tom de escárnio, tornando-se uma quebra na violência cada vez mais crescente, principalmente aquela que parte do seu marido.


Entretanto, o grande brilho do filme está nas cenas do par em seu jogo de poder, manipulação e dominância. Quando ambos estão em tela, como se não pudesse decidir quem filmar, Coimbra se desfaz do tradicional plano/contraplano e os coloca no centro de sua mise-en-scène. Os atores circulam pela imagem em total liberdade, simbioticamente completando um ao outro. Valério, que se sente fraco e impotente diante do tio, precisa de sua esposa como uma forma de escape de toda a violência que guarda dentro de si, ao passo que ela se sente bem em tê-lo sob seu controle, mesmo quando está na posição de submissa. Isso tudo vaza através do sexo, mas também da forma como dialogam, em toda a passivo-agressividade de Regina, ou na forma como Valério se comporta, tentando ser o resolvedor de tudo, mesmo que seja incapaz de sê-lo por completo – até mesmo compreendendo isso, consciente de sua própria fraqueza.


Assim, o grande trunfo, para além das atuações formidáveis, está no texto referente aos dois personagens, na grande habilidade de se compor um jogo de manipulação que parte de ambos os lados, uma eterna corda que se estica na direção de cada um, sem que nenhum deles perceba. Essa corda tensionada torna-se, assim, a própria inquietação do filme.

Divulgação: Paris Filmes

A casa em reforma, principal cenário do filme, transforma-se, diante dessas maquinações e manipulações de seus moradores, em uma personagem, um espelho da relação do casal. Em diversos momentos do longa, ela está imersa em sombras, numa sensação de incompletude e abandono causada pelo seu esvaziamento por conta da reforma, ao passo que também é assim por conta da instabilidade da relação e dos planos de seus personagens. A casa é violada, o casal é violado. Tudo parece estar em ponto de ruptura.

Talvez o grande problema de Os Enforcados esteja nas disputas que não se referem ao casal principal, e sim aos negócios do jogo do bicho. Apesar da concretude do risco, em que as brigas pelo poder sempre soam perigosas demais, os próprios negócios parecem não ser críveis o suficiente, vivendo sempre na tangente da superficialidade. Em um filme que mantém uma aparência formalmente realista, as operações do jogo do bicho — mote principal de conflito do filme — soam folclóricas demais. Sua representação parece irreal, e seus inimigos, que quase nunca vemos, apenas ouvimos que existem, nunca chegam a representar algo para além da ideia.


Por sorte, os problemas quase não incomodam – ou, pelo menos, não o suficiente –, devido ao grande jogo de manipulações Macbethianas dentre seus protagonistas e coadjuvantes que os cercam. A corda amarrada no pescoço vai apertando e apertando, até arrebentar nos dez minutos finais, nos quais a resolução de todo o caso se dá numa explosão de violência chocante. Há sujeira na brutalidade, no fluir do sangue exposto.


Parte irmãos Coen, parte Nelson Rodrigues e, principalmente, parte Shakespeare, Os Enforcados é uma comédia de erros jocosa, uma tragédia (em todos os sentidos da palavra) carregada pela grande complexidade da relação de seus personagens. É, sobretudo, uma fábula carioca, nascida da observação de bairros de novos ricos – como a Barra da Tijuca, onde os personagens moram –, em que as pessoas enriquecem à medida que sua própria moral vai regredindo vorazmente, sendo violada, como a própria casa que os abriga.


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