Desde sempre, especialmente nos últimos vinte anos, tem havido uma reflexão contínua sobre imagens violentas. Essa última expressão parece se desdobrar em duas ideias distintas; afinal, uma imagem violenta é diferente de uma imagem de violência, ainda que ambas se encontrem de alguma forma na percepção por parte de quem observa. É nessa linha tênue que podemos observar O Sequestro do Papa, novo filme de Marco Bellocchio que chega aos cinemas brasileiros com distribuição da Pandora Filmes. Tal percepção parte não porque no filme haja cenas de violência de forma constante – muito pelo contrário –, mas pelo fato de que muitos momentos são carregados por uma força que não pode ser nomeada de outra forma que não violenta. O filósofo esloveno Slavoj Žižek descreve essa abordagem como violência subjetiva, que está intrinsecamente ligada a um sistema: não apenas a violência física explícita, como as formas mais sutis de coerção que sustentam as relações de poder.
O longa-metragem começa com a invasão da casa dos Mortara pela polícia italiana, sob ordem do Padre Pier Gaetano Feletti (Fabrizio Gifuni), citando uma política dos Estados Papais que proíbe que cristãos sejam criados por membros de outras fés. Assim, o pequeno Edgardo (interpretado por Enea Sala na infância e por Leonardo Maltese na juventude), com apenas seis anos, é levado embora. O instante da separação entre pai e filho é retratado por Bellocchio como um ponto de ruptura, onde a iluminação e a trilha sonora melodramática intensificam os sentimentos, sendo um dos poucos momentos em que a força física é empregada pelos detentores do poder. O rosto de Edgardo se torna emblemático nesse contexto, pois, a partir dali, sua percepção de mundo passará por uma profunda transformação.

Ao acordar e viajar em direção à sua nova moradia, a primeira coisa que ele vê é a imagem da cruz, cujo metal reflete a luz enquanto ele se aventura por esse novo local. Se essa descrição parece comum tanto imagética quanto narrativamente, é porque faz parte das convenções cinematográficas, as quais Bellocchio utiliza de maneira fascinante. Ele não apenas adota um tom que abraça o exagero melodramático ao retratar personagens históricos, mas também mantém o filme imerso em uma atmosfera carcerária que permeia o projeto como uma tonalidade constante. Assim, cada decisão na composição dos planos se torna um veículo preciso para explorar o cerne de sua narrativa: a violência. Por exemplo: quando Edgardo chega à igreja, ele é confrontado com os símbolos católicos e a imagem crucificada de Jesus Cristo, marcando seu próprio martírio.
Os momentos de reunião para as preces se transformam em mais um instrumento de doutrinação, enquanto a morte de uma criança, mesmo após as rezas, quase se torna um indício de culpa por não se ter tido crença e devoção suficientes. Todas essas experiências parecem dilacerar Edgardo de alguma forma, transformando seu rosto alegre visto no início em um índice de angústia e dúvidas. Continuar amando sua mãe e valorizar tudo o que ela lhe ensinou aos poucos se revela um equívoco; estar diante dela passa a ser uma tentativa de manter as aparências dentro do ambiente católico, enquanto suas emoções são rapidamente punidas com mais uma separação dolorosa. A partir desse momento, instala-se o medo.


A Igreja Católica emerge como símbolo dessa violência subjetiva, onde seus ambientes imponentes e espaçosos se transformam em cenários opressivos de controle ideológico. Edgardo Mortara, cuja vitalidade parecia indicar saúde aos olhos da família, estava aos poucos sucumbindo ao que ele passou a conhecer como mundo. No entanto, não era apenas ele; a família Mortara como um todo, apesar de todas as suas lutas, se torna vítima dessa violência institucionalizada, apresentada como imparcial nos tribunais. Mas, como o próprio Papa Pio IX (interpretado com precisão por Paolo Pierobon) deixa claro em certo momento, os poderes estão concentrados em suas mãos e, portanto, qualquer crítica contra ele não afeta seu papado.
A dor da separação familiar e a impotência diante do poder são perceptíveis em três momentos cruciais, sendo dois deles de forma simétrica. O primeiro é a montagem da oração, onde, através de close-ups, Marianna (a expressiva Barbara Ronchi), a mãe, e Edgardo parecem se olhar, porém ambos estão em ambientes diferentes. Ele, rezando as preces católicas; ela, as judaicas. Mas a separação completa ocorre na rima visual. Ainda no início do filme, Edgardo, não querendo ser levado do seio familiar, se esconde embaixo da saia da mãe; em outro momento, já próximo do fim, ele corre para debaixo das roupas do Papa. Sua representação icônica, tanto familiar quanto religiosa, mudou.
O Sequestro do Papa – cujo título original, Rapito, carrega um duplo sentido de sequestro e apropriação ideológica –, utiliza o formalismo cinematográfico como sua bandeira crítica. Bellocchio colore a tipografia de vermelho, fazendo com que os letreiros que aparecem na tela sejam como o rastro de sangue que não é mostrado fisicamente, mas que permeia todas as imagens através de sua violência.
Comments