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O que Charlie Brown (ainda) pode nos dizer?

Foto do escritor: Lwidge de OliveiraLwidge de Oliveira

A caminho do lago congelado, onde outras crianças estão patinando e cantando a chegada das festividades natalinas, Charlie Brown, acompanhado por Linus, reflete a respeito dos sentimentos amistosos que possui com esta época do ano, afirmando não se sentir à vontade com algo que todos aparentemente ansiavam, um sentimento deslocado do tempo e desejo comum. Se por um lado as tirinhas Peanuts, escritas e desenhadas por Charles Schulz, encantaram uma legião de fãs durante o período de lançamento devido a traços simples e travessuras do personagem secundário Snoopy, sua relevância perdura particularmente por essas indagações advindas das temáticas exploradas em cada narrativa, refletindo em corpos infantis angústias presentes na vida adulta. Em O Natal de Charlie Brown (1965), animação curta para televisão e primeira a ser feita com a trupe criada por Schulz, a reflexão recai sobre desejos materiais e individuais, paradoxalmente entremeados em uma época que se prega a confraternização e gratificação.


"A possibilidade de reprodução técnica da obra de arte transforma a relação das massas com a arte", escrevia Walter Benjamin¹, delineando de forma perspicaz uma provocação inerente à modernidade: a suscetibilidade às imagens construídas, montadas, incitadas ao consumo e às representações. A vida moderna se constrói a partir da imagem, do desejo impulsionado por aquilo que é registrado à quintessência na fotografia, cinema, televisão, etc. Jamais o desejo fora tão mimético quanto no século XX, particularidade potencializada atualmente pela convergência de informações nas redes sociais, onde a vida é experienciada e associada através de pequenos aparelhos. No filme, Charlie Brown indaga de certo modo tamanha sujeição, suspeitando que a cultura material criada sob o Natal pouco tem a ver com a verdadeira mensagem por trás da celebração, abrindo caminho para refletir acerca das contradições próprias ao sujeito moderno.



O diálogo com a "psiquiatra" Lucy van Pelt é um dos expoentes da reflexão proposta. Tentada a classificar o que Charlie Brown está sentindo, uma vez apresentados os sintomas de descontentamento, a menina advoga que este é acometido por pantophobia (medo generalizado). Para sua surpresa, Brown afirma ser verdade. Medo este impulsionado pelas festividades, geralmente carregadas de sentimentos associados a fechamentos de ciclo e renovação dos votos para o ano seguinte. A incompreensão do Natal por parte do garoto advém desta impossibilidade de administração de tais sentimentos, pois a autocrítica sempre recai sobre os feitos individuais e, grosso modo, aquisitivos. 


Nesse cenário profundamente melancólico, o convite para dirigir a peça natalina da escola caiu como uma luva para Charlie Brown. Com a trupe toda reunida, tenta imprimir em poucas páginas de um suposto roteiro o que acredita ser a mensagem natalina. A possibilidade de construção narrativa e a transmissão destes sentimentos surgem como uma alternativa à solidão, impondo aos colegas diretrizes a serem seguidas e desvirtuadas da necessidade aquisitiva, firmada em diálogos ocorridos anteriormente. Ademais, a peça surge como essa tentativa de transpor outra perspectiva acerca do Natal, capaz de conscientizar e afastar os colegas da abordagem até então maniqueísta. No entanto, o que, antes, parecia uma tarefa nobre e afetuosa, prova-se um verdadeiro desafio, visto que as percepções acerca do feriado já foram moldadas e incutidas de forma profunda no imaginário social.



De todo modo, a fita não se dá como perdida, pois Linus surge com um monólogo a fim de evidenciar o verdadeiro espírito do Natal. Obviamente, trata-se de uma discurso cristão, disposto a exaltar narrativas bíblicas. Contudo, a ação estabelece o encontro de Charlie Brown consigo mesmo, desta vez voltando-se para o céu estrelado e com uma árvore de poucos galhos em mãos. O trajeto culmina na união de todas as crianças para enfeitar a árvore, símbolo máximo da ação conjunta, provando enfim que as palavras se fizeram presentes para restaurar o encanto primordial, pouco a ver com as materialidades e marcado principalmente pelo ato de compartilhar o momento, os sentimentos, com o outro. Uma compreensão própria do que é ser e estar no mundo, mas suprimida por necessidades supérfluas e deturpadas, capazes de nos desorientar e desacreditar que o que tanto precisamos encontra-se mais perto do que imaginamos. 


 

Referência Bibliográfica

Vf. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época da possibilidade de sua reprodução técnica. In: __. Estética e sociologia da arte. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 35


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