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O que acontece quando nada acontece: "IMO" e o ócio como potência feminina

Foto: Divulgação/ Descoloniza Filmes
Foto: Divulgação/ Descoloniza Filmes

Às vezes tenho a sensação de que Jeanne Dielman continua descascando batatas. A personagem da obra mais rememorada da cineasta belga Chantal Akerman permeia os sonhos e ações de mulheres que contam suas histórias com a câmera. O filme de mais de três horas fica conhecido por uma narrativa na qual nada acontece; o cotidiano feminino é subjugado como um campo sem ação, acompanhado por uma montagem que prende o espectador a sentir o tempo transcorrendo em tela. Somos levados a conhecer a vida doméstica de Jeanne,  que cumpre suas obrigações como mãe e mulher: sua vida é banal, naturalizada e desinteressante sob um olhar treinado a esperar feitos de grandes heróis. Sob a potência do ócio e do silêncio, a estreia de IMO nas salas de cinema direciona a discussão do encadeamento de planos enquanto construção experimental e a recusa de certos padrões de olhar estigmatizados por uma história do cinema essencialmente masculina. Afinal, agora descascamos maçãs.


Segundo a língua portuguesa, IMO é um adjetivo masculino que designa algo inferior, aquilo que está abaixo, ao mesmo tempo em que a etimologia da palavra se refere a algo íntimo, interno e profundo. O adjetivo empregado no título exemplifica bem a estrutura narrativa do filme, que se posiciona como um vetor para demonstrar as opressões e as injúrias do patriarcalismo, a dominação do corpo e os limites que o ser mulher proporciona em sempre estar presa a um status de inferioridade. Ao mesmo tempo, o ritmo lento do filme possibilita refletir o ócio daquelas ações ritmadas, como um pentear de um cabelo, adentrando em um espaço muito íntimo daquelas figuras. A narrativa perpassa a história de três mulheres que, em um primeiro momento, parecem habitar a mesma residência. A primeira parte é construída com fortes teores idílicos, o espectador é transportado para um paraíso tranquilo, com várias camadas de sons da natureza que circunda aquelas vivências. 

Foto: Divulgação/ Descoloniza Filmes
Foto: Divulgação/ Descoloniza Filmes

Nos dez primeiros minutos, acompanhamos a vida transcorrer, e um plano chama a atenção: enquadrando um pássaro na gaiola, a personagem se senta ao lado e a encenação passa a sensação de enclausuramento. Alguns momentos depois,  a mulher volta em um contexto turbulento: o telefone não para de tocar, e mãos que parecem uma extensão de seu corpo a afagam ao mesmo tempo que a sufocam. O cortar de uma dessas mãos marca o primeiro tom visceral do filme, que se estabelece em todo seu desenvolvimento. A mutilação da mão, dos olhos e do corpo surge como uma forma de levar a provocar sensações desagradáveis, onde nada acontece e, simultaneamente, acontecem muitas coisas, ebulições contidas, as fagulhas cintilando. A retirada e o plantio dos olhos serve como uma grande metáfora às políticas do olhar de Laura Mulvey – é preciso germinar e brotar outro olhar para as questões de gênero no cinema, pauta tão cara e que atravessa décadas.

Foto: Divulgação/ Descoloniza Filmes
Foto: Divulgação/ Descoloniza Filmes

Entre o fantástico e o belo, a planificação do filme é pautada em uma direção de arte marcada e potente, assumindo um tom maximalista. A cena do jantar assume um teor que remete à cena do banquete em As Pequenas Margaridas (1966) de Vera Chytilová: o corpo feminino é exposto como parte do alimento do banquete, um pedaço de carne para a apreciação dos cavalheiros em volta. As frutas bonitas e frescas se transformam em podridão em um tempo acelerado, a mulher é substituída por uma manequim, o ato final se concretiza. Uma sensação agridoce é visível – a vida permanece a mesma, a morte simbólica é apenas uma maneira de rememorar o longo caminho a percorrer. IMO sustenta sua estética surrealista com esmero, seus planos são fluidos e o cenário onírico construído leva à reflexão dos caminhos construídos e aqueles em construção para o cinema brasileiro contemporâneo, no qual o experimental e o transgressor são as únicas vias de reafirmar o ócio em tela como uma grande potência feminina.


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