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O pesadelo de uma ascensão em "O Homem dos Sonhos"

Foto do escritor: Luiza NevesLuiza Neves

Déjà vu, traduzido literalmente do francês para "já visto", implica a estranha sensação de já termos vivido alguma situação presente, causando um estranhamento e certa inquietude no sujeito acometido pela impressão. Uma das primeiras vítimas do surreal fenômeno que é premissa do novo longa de Kristoffer Borgli, O Homem dos Sonhos, acredita que a familiaridade sentida ao se deparar com o protagonista advém, justamente, de um déjà vu. É um pouco mais complexo.


Paul Matthews (Nicolas Cage), um professor de biologia, vive uma rotina bem estabelecida com sua esposa, Janet (Julianne Nicholson), e duas filhas. Ensinando sobre zebras, em uma de suas aulas, ele aponta os lados positivo e negativo do padrão listrado que as faz se misturar em seu coletivo: sem destacar-se na multidão, ficam menos suscetíveis a chamar a atenção de possíveis predadores. Aquelas que se realçam, no entanto, ganham vantagem para atrair parceiros para o acasalamento. O tema é um paralelo claro com os eventos que virão a seguir. Paul, até então um homem na meia-idade, de classe média, comum, pouco sedutor, é inusitadamente introduzido nos sonhos de milhões de pessoas, a princípio como alguém passivo, que não impede as mais variadas tragédias de ocorrerem, mas tampouco provoca qualquer agravo. Ao ganhar reconhecimento como tal figura, experimenta uma subida à fama repentina.


Sua imagem adquire valor, e passa a ser cobiçada por agências publicitárias e marcas grandiosas. O mais interessante, entretanto, é a atenção que ganha de Molly (Dylan Gelula), uma jovem que, diferentemente de todos os relatos até a ocasião, admite enxergá-lo dentro de uma fantasia sexual. De maneira hesitante, o protagonista acolhe a ideia de tentar recriar tal fantasia, até onde sua culpa marital o permite. A cena, todavia, carece da libido e excitação  que a moça afirma sentir na presença do homem, tornando-se apenas a reprodução de uma situação embaraçosa e possivelmente comprometedora. Semelhantemente, ao discutir os desejos eróticos de sua esposa, Paul e Janet não transmitem a vontade de um casal amoroso, o que acaba por fazer com que a temática da atração sexual adquira um tom cabisbaixo.



O filme, adiante, não intencionando buscar respostas ou possíveis explicações para o ilógico dos acontecimentos ocorridos, percorre outro caminho, bastante consciente da contemporaneidade em que se insere. Isso porque, em uma sucessão relativamente rápida de eventos, o gosto do prestígio experimentado logo se transforma em um pesadelo à luz do dia. Na tendência de Borgli de arruinar a vida de seus personagens, assistimos a Paul tornar-se uma espécie de inimigo público, como determinada consequência de suas sensações na vida real – ao cultivar certos amargores, seu papel no plano onírico nacional vai da passividade à crueldade extrema, e ele se torna persona non grata até mesmo em seu ambiente de trabalho, por mais que defenda não ter cometido, efetivamente, quaisquer dos atos que lhe são atribuídos. É dessa virada de chave que são extraídos os principais comentários que o filme busca traçar acerca do que, hoje, chama-se de cultura do cancelamento.


No que é bem sucedido na construção de sua diegese – isto é, realmente pouco importa, ao espectador, obter um esclarecimento acerca dos porquês do fenômeno em questão –, a obra perde força ao recair em certas obviedades, adotando um tom que mais parece um bê-á-bá do processo de linchamento virtual, tão notório e debatido atualmente. Para além da previsibilidade dos acontecimentos que passam a assolar a vida de Paul, o mesmo também ocorre com o uso da imagem; em momento pivotal de seu arco, o personagem, até aqui sempre filmado de forma bastante central e estática, passa a ser visto por uma câmera trêmula, que abandona os tripés e se transfere às mãos de seu operador, enquanto uma trilha desafinada soma-se à perturbação. Agora um produto do inconsciente alheio, com seu caráter apropriado e ditado a partir de comportamentos que executa nos sonhos da população, o homem da vida real torna-se indiscriminado daquele que cada um concatenou enquanto dormia. O diretor busca explicitar os perigos decorrentes das relações criadas com figuras públicas através de veículos de mídia massivos e redes sociais, bem como exibir a falta de nuance de que carecem muitos debates recentes na internet.



São pontos válidos. A falha, aqui, encontra-se na tentativa de explorar diversos tópicos dentro de um enredo de aproximadamente cem minutos, propondo confrontos que acabam ficando mais rasos do que pretendidos. O amor e o desejo, o reconhecimento e a privacidade, o individual e o coletivo, o trauma e o infortúnio, a autenticidade e a adequação às vontades de todo um sistema; é irrefutável a afirmação de que o longa consegue suscitar debates, mas sem mergulhar mais a fundo em nenhum. É daí que provêm as ditas obviedades, por vezes bem-vindas, porém cansativas por certa sensação de repetição.


Sobretudo, O Homem dos Sonhos aparenta ressaltar a mensagem de que o alcance do sucesso traz consigo consequências severas. Para além do quase exílio que lhe é imposto, os danos aos relacionamentos pessoais de Paul são os que mais lhe afetam. Borgli procura explicitar que, não raro, já temos muito do que julgamos querer mais. E, novamente, não há discordâncias quanto a isso. Ainda assim, não obstante uma enunciação intrigante e atuações bem carregadas, trata-se de uma obra que incide em um pouco mais do mesmo. Brevemente instigante, levemente divertido, ressoando um pouco o sentimento de déjà-vu.

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