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O outro lado da imagem

Foto do escritor: MontezMontez

Nós que estamos aprisionados aqui,

estamos despertos como as estrelas à noite”

 Joseph Wulf


Ao fundo, um lago flui com serenidade, suas águas espelhando o céu azulado. Às margens, um grupo de pessoas se reúne, envolto em conversas que, para nós, permanecem inaudíveis, preparando-se para adentrar as águas lacustres. Os tons verdes da natureza se mesclam com o preto das roupas de homens, mulheres e crianças. Essa composição pictórica, digna das pinceladas de Édouard Manet ou de qualquer outro mestre impressionista, não se restringe a uma obra estática em tela, mas sim constitui o marcante primeiro plano de Zona de Interesse [The Zone of Interest, 2023], a mais recente obra cinematográfica de Jonathan Glazer. Tal idílio, contudo, é uma ilusão: o espectador se depara com o inferno. Essa imagem meticulosamente elaborada emerge de uma abordagem que preconiza o distanciamento do observador, transformando seu olhar em um instrumento analítico, desvinculado de uma aproximação emotiva. Em outras palavras, o cineasta convoca o espectador a sentir-se desconfortável em sua posição, a contemplar a totalidade oferecida pela imagem, e não apenas sua superfície.


Quando as palavras "observação" e "analítica" se amalgamam em uma única adjetivação, adquirem uma tonalidade que poderia ser facilmente descrita como "fria". Ou seja, haveria um cinema "quente", que busca provocar os sentimentos de forma direta, e um "frio", no qual as emoções não são explicitamente despertadas, frequentemente associado a filmes cuja relação entre espectador e narrativa é distanciada. Todavia, essa dicotomia se mostra frágil e, sobretudo, maniqueísta. Na realidade, uma obra cinematográfica que se propõe reflexiva oferece ao espectador uma experiência mais matizada, que engloba tanto a observação analítica quanto a provocação emocional. Susan Sontag, em um de seus ensaios mais célebres, argumenta que a ideia de uma arte fria é questionável, pois um filme que mantém sua câmera e seu envolvimento emocional a distância pode ainda assim arrebatar o espectador, apresentando imagens aterradoras. Este é exatamente o caso de Zona de Interesse.



Para compreender como a forma cinematográfica gera tais imagens, podemos tomar como exemplo uma sequência marcante do filme de Jonathan Glazer: um travelling lateral, um movimento de câmera que não é usual ao filme, logo torna-se destacável. As lentes acompanham Hedwig Höss (Sandra Hüller), esposa do oficial nazista que comanda o campo de concentração de Auschwitz, enquanto ela mostra à mãe o jardim que vem cultivando para sua família, como se estivesse diante das câmeras de um programa de televisão para jardinagem. A câmera acompanha seu movimento com leve aceleração, revelando as diversas espécies de flores e o cuidado dedicado a cada uma delas, enquanto ela imagina como estarão dali a alguns meses. Esta é a superfície da imagem, o primeiro elemento aterrador. Ao fundo, um muro de concreto com arame farpado separa aquele espaço do campo de concentração. O céu azul e sereno torna-se cinzento com a fumaça dos crematórios. O jardim de Hedwig torna-se um símbolo da vida que ela e o marido sempre sonharam, como ela mesma menciona. Através da câmera distante e do trabalho consequente de profundidade de campo, Glazer e seu diretor de fotografia, Łukasz Żal, constroem uma imagem multifacetada e assombrosa.



Durante toda a metragem do filme, o espectador é confrontado com o retrato da banalidade do mal, onde a vileza é praticada como rotina, como parte de um trabalho diário. Hannah Arendt, filósofa e autora do livro Eichmann em Jerusalém, refere-se à ideia de que a maldade muitas vezes não é resultado de intenções monstruosas ou extraordinárias, mas sim de uma conformidade banal e cega, argumentando que o mal muitas vezes surge da falta de reflexão e responsabilidade individual. Enquanto, de um lado do muro, crianças brincam na piscina, flores são cultivadas e conversas sobre trivialidades acontecem, do outro o genocídio idealizado pelos vizinhos obscurece o céu. Em cada imagem clara do filme, uma sombra se estende gradualmente. São construídos diversos planos que pressionam a imagem de cima, transtornando-a, intensificando a sensação de opressão. O distanciamento das lentes, evitando qualquer plano mais próximo, não apenas afasta a audiência dos opressores – e evita qualquer sensacionalismo capital às narrativas hollywoodianas –, mas também confere profundidade à cena, fazendo com que o espectador explore a imagem com seus olhos, tornando-se ativo e, por conseguinte, saindo da zona de conforto proporcionada pela escuridão da sala de cinema.


Este desconforto não é apenas visual. O design de som de Zona de Interesse é um elemento crucial na construção dessa atmosfera. Por mais de um minuto, no início do filme, as sombras da sala escura se fundem com a escuridão da tela, enquanto a trilha sonora de Mica Levi emerge da audiência em direção à imagem, envolvendo o espectador e conduzindo-o a contemplar aquela paisagem idílica inicialmente apresentada. Esse descompasso entre o visual e o auditivo intensifica a natureza aterradora da obra. Além disso, ao observarmos Hedwig comentando sobre as flores que variam do branco ao vermelho sangue, sons de tiros e gritos ecoam do outro lado do muro. O que é omitido pela câmera adquire um poder sugestivo tanto pelo som quanto pela atmosfera sombria do que é dito e feito. Quase nunca se menciona o crime que acontece nas proximidades, mas ele é visto e ouvido a todo momento. Qualquer pausa ou silêncio dentro da casa permite que se ouçam gritos ou balas do outro lado.



Em meio ao realismo, emerge uma textura de imagem distinta, inicialmente como um sonho, mas que eventualmente se integra à realidade tão completamente quanto as outras. Na escuridão total, uma garota caminha deixando alimentos nas imediações das minas próximas aos campos de concentração. O contraste imagético é notável pela abordagem de Glazer e Żal nesse momento específico. Enquanto a maioria das cenas envolvendo a família Höss se desenrolam durante o dia, aproveitando ao máximo a luz solar, esses breves momentos ocorrem à noite, capturados por uma câmera termal. O discurso fílmico é intensificado pelas escolhas do cineasta. Dentro da obscuridade desta narrativa, essa jovem moradora local sentia-se compelida a ajudar os prisioneiros da forma que podia. De certa forma, ela representava um ponto de luz na escuridão, e isso se torna evidente na imagem, pois, ao capturar a temperatura do seu corpo, ela se torna um ser que irradia na tela, como estrelas no céu.


Os tons sombrios que gradualmente engolem a imagem – e os próprios personagens – são os mesmos que envolvem o espectador em sua condição de observador reflexivo. É quando, por um instante, a câmera se volta para nós, sentados do lado oposto da tela, imersos e perturbados. O futuro se insinua, posicionando-se como um lembrete inquietante. Somos convidados a contemplar não apenas o desenrolar da trama diante de nossos olhos, mas também nossa própria posição no mundo enquanto testemunhas dos eventos que se desenrolam. A fissura adiciona uma dimensão aterradora. Ao chegar ao fim e nos permitir mais um longo minuto imersos na escuridão, Zona de Interesse encontra sua força na consciência da forma. A suposta frialdade do distanciamento se revela equivocada; pelo contrário, o adiamento das emoções permite que estas se tornem ainda mais intensas. Ao abraçar a estética do afastamento, Jonathan Glazer evita as emoções diretas e efêmeras, tornando-as duradouras e profundamente impregnadas em nossas mentes.

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