"São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente", escreveu Walter Benjamin em um de seus mais célebres ensaios, O Narrador. A partir dessa premissa, configura-se uma ideia de narrador associada ao distanciamento, aquele que possui os relevos de uma história e passa ao outro. Tal ideia, por sua vez, é facilmente confundida com uma potência de poderio; aquele que detém o conhecimento, senta-se confortável em sua posição sem se envolver diretamente com o que se desenrola. Tal descrição, que poderia encontrar uma definição no narrador em terceira pessoa, cabe quase que precisamente a Leon (Thomas Schubert), protagonista de Afire [Roter Himmel, 2023], novo filme de Christian Petzold, cineasta cuja filmografia é bem desenhada em torno das possibilidades de contar uma história, ainda que ela já tenha sido contada, mas principalmente por fazer com que elas ganhem textura através das decisões que envolvem o cinema como uma experiência estética, onde a imagem e o som se conjugam com os cheiros e o tato.
Observemos como, por exemplo, em sua primeira sequência, logo após o carro quebrar, o protagonista é deixado sozinho por seu amigo, Felix (Langston Uibel), em uma floresta ruidosa. O olhar de domínio de Leon, de quem estava apenas seguindo o fluxo sentado no conforto da posição de carona, vai sucumbindo aos poucos, deixando-se envolver por uma atmosfera de desconhecimento. Para alguém como ele, cuja posição de escritor está diretamente ligada à sua arrogância, expor fragilidade é sair do seu espaço de controle. Quando é visto dessa forma, sua reação mais genuína, neste momento, é a violência física. A jornada que Petzold traça desde o início é justamente essa: de um narrador cuja arte está diretamente associada ao envolvimento com o que se observa. E o cineasta acompanha essa transformação a partir de suas escolhas estéticas formais, desde a forma que enquadra um plano a forma com a qual a câmera observa os rostos e corpos dos personagens que circulam naquela casa do Mar Báltico.
E, como um narrador romântico, a fragilidade está exposta através do sentimento que Rousseau um dia indicou como fator essencial para a fala humana: a paixão. A necessidade de expor seus sentimentos e necessidades fez com que o Homem, ainda segundo o filósofo, desenvolvesse a capacidade de emitir sons. Ora, Leon nunca se permite isso porque a ideia do amor sempre é um meio de escrita e nunca, de fato, uma realidade. Seu livro, descrito como um "lixo", por Nadja (Paula Beer) é a dissertação teórica de alguém que acredita saber o que é o amor a partir do que observa, mas nunca sem de fato senti-la. Logo, a personagem de Beer, assim como Claire, de O Joelho de Claire, do Rohmer, ou Madeleine, de Um Corpo que Cai, de Hitchcock, se torna um inicial vislumbre, uma chama vermelha que atravessa o jardim. Ela, assim como os incêndios que circundam aquele espaço, ateia fogo no coração de Leon, o homem que nunca viveu.
O primeiro contato desse homem, cuja masculinidade frágil esconde-se a partir da "auto-encenação", com Nadja se dá através de uma escolha muito precisa de Petzold: a partir de uma janela. Ele, do lado de fora, se aproxima daquela mulher como se ela fosse, como ele mesmo afirma anteriormente, alguém que está distante. Ora, se pensarmos que tanto Rohmer quanto Hitchcock se utilizam do zoom-in como forma de aproximação do olhar, Petzold emoldura sua protagonista como se ela fosse um quadro, alguém cuja admiração do narrador passa pelo inalcançável dos poemas românticos, daqueles homens egóicos cuja paixão se dá através do aparente e não do real. Quando, numa noite, todos os presentes naquela casa observam as chamas ao longe - ainda que elas estejam cada vez mais próximas, Petzold faz da imagem do fogo muito mais que uma representação; é um índice. Em outros termos, é a chama que aproxima Felix e Devid (Enno Trebs) e que, consequentemente, aponta os caminhos entre Leon e Nadja.
Afire, portanto, é mais que um projeto cujo título indica o material em combustão. Ele realmente transforma esse símbolo romântico em mais que uma consequência narrativa. Petzold provoca seu protagonista, o desmonta de seu pedestal e o coloca como narrador vivente, como alguém que, para produzir arte, necessita conhecer o mundo. Esse mundo, aliás, contém caminhos sinuosos e devastadores, provoca alegria e provoca dor. Um bom narrador é aquele que se permite viver e sentir. O olhar de Nadja, em lágrimas, diante de uma imagem que relembra Viagem à Itália, de Roberto Rossellini - provavelmente o filme que Afire mais bebe e reconfigura - permite que Leon, ainda que parcialmente, entenda seu lugar como alguém que narra. A sensibilidade não está apenas no rosto, mas também no corpo, naquilo que é inacessível ao nosso olhar, mas que está presente no extracampo. Sim, Benjamin estava certo ao dizer que os bons narradores são cada vez mais raros. Petzold faz parte dessa raridade.
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