Não há retorno, estamos indo para a "Cidade dos Sonhos"
- Montez
- 17 de abr.
- 4 min de leitura

Era inevitável. Tinha de ser. Seja por capricho do destino ou por um encontro casual em uma casa da Sunset Blvd 7200W, eu teria que escrever sobre Cidade dos Sonhos (2001), um dos filmes mais importantes para mim quando penso no que chamamos de formação cinéfila. Mais cedo ou mais tarde, o longa-metragem de David Lynch encheria essa página. Mas não, não serão palavras que tentarão dar conta de uma explicação acerca do filme. Muito já foi escrito, pensado e explicado por aí. Talvez, de fato, eu recorra a alguns clichês linguísticos para dar conta da profusão de sentimentos (ei-lo!) que a jornada encabeçada por Naomi Watts e Laura Harring ainda me provocam, mas peço licença para dar conta dos meus arroubos melodramáticos.
Devo eu me deixar levar pelo borramento das lembranças e das sensações? Será que começo com minha primeira visita ou a última? Dependendo do ponto de vista, elas são as mesmas pois, mesmo sabendo de cor, “cada vez é uma nova vez”, já diria João Bénard da Costa. Talvez pouco importe se foi numa noite de calor em dezembro ou em outra igualmente quente de abril, já que, quando Betty ou Diane chega à Los Angeles, é na superexposição da imagem que o antinaturalismo se instala, e começamos a jornada em torno de um espiral que poderia facilmente ser encontrado em algum poema épico. São incontáveis as narrativas cinematográficas que tentam dar conta do ilusionismo de uma indústria e de uma cidade, mas como transformar as palmeiras-símbolo e as luzes noturnas em mais que um mero ícone da glória e da decadência? Lynch o faz através de um deslocamento constante entre o sonho e a vigília, entre o desejo e a realidade, embaralhando os fios narrativos como quem brinca com as películas em uma sala de edição — não para desorganizar, mas para revelar.

É nesse gesto que ele encontra o que talvez seja o verdadeiro centro de Cidade dos Sonhos: a fratura. A fratura como janela, como fenda por onde entra o espaço para a incompreensão racional e o real sensorial. Essa fratura está na montagem que desmonta, nas vozes que não pertencem a ninguém (ou, na verdade, pertencem a todos). É o ponto em que o cinema se torna multissensorial e se ancora nessa rachadura fundamental, onde a narrativa escorre pelos dedos, se desfaz, e renasce. É um modo de ver preenchido por uma névoa que escapa. Ela sempre escapa. É nessa fratura que eu volto ao filme – e à cidade – como quem volta a um sonho recorrente, onde tudo parece familiar e, ao mesmo tempo, estranho. Em cada visita, sou outro.
De fato, não sou o mesmo cinéfilo do início da década passada, assim como não serei o mesmo ao final desta, mas existe um caminho da minha compreensão cinematográfica que tem todas as digitais de Lynch: a de que o cinema é a expansão da imaginação, é o encontro daquilo que está muito além da superfície das imagens geradas com constância pela contemporaneidade. O cinema de David Lynch não é espelho, é abismo. E mergulhar nele é o convite que Cidade dos Sonhos estende a cada espectador disposto a atravessar suas próprias avenidas. Por alguns momentos, somos Betty/Diane e Rita/Camilla após o choque do encontro com um corpo sem vida. Com os rostos de choque, a imagem não encontra sua linearidade e borra-se, transforma-se, confunde-se. Por alguns momentos, assumimos um novo papel no Club Silencio, enquanto trompetes tocam sem realmente tocar e vozes cantam sem realmente cantar.
Há quem considere essa sequência a melhor do filme (ou, pelo menos, eu considero!), não porque escancara um suposto discurso em torno da ilusão da arte cinematográfica – na realidade, pouco importam as camadas de significado que tentam impor ao filme –, mas por todo o controle que a sequência exerce dentro de um clímax. Essa cena opera quase como uma hipnose, pondo os personagens e, por consequência, o espectador, em um espaço limiar. Quando Rebekah Del Rio canta Llorando, é como se o tempo fosse suspenso, transformando o sentimento de incerteza para a constatação de que algo está desmoronando — não só na narrativa, mas dentro de nós. É uma revelação emocional, claro. Um momento de verdade dentro da mentira, ou talvez uma mentira que revela a verdade.

E a tal verdade, aqui, não é aquela atrelada ao rigor da razão. É, antes, uma verdade que pulsa no território do afeto – essa que se insinua pelas frestas da experiência sensível como algo que nos atravessa antes mesmo de podermos nomear. Neste lugar de suspensão, o cinema reencontra sua vocação mais profunda: não a de conduzir à compreensão racional, mas a de afetar, de tocar, de desestabilizar. Lynch, então, não aponta caminhos; ele os desfaz. É talvez aí, nesse ponto, que a arte revela sua face mais potente: quando se oferece como espaço de fratura. Em que não se busca fechar sentido, mas abrir presença. E, talvez, no fim das contas, seja justamente esse o gesto mais radical: habitar a fratura, permanecer no entre, no intervalo, acolher o enigma sem querer traduzi-lo, sem forçar coerência onde há apenas fluxo. Não vou continuar. Retorno a João Bénard da Costa e constato que, como as coisas muito grandes, Cidade dos Sonhos não se explica. Não há banda, não há segurança, não há chão firme. Há só o som, a imagem, o sentimento. No final, há cinema. E silêncio.
Estoy llorando.
Kommentare