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“Megalopolis”: um sonho dentro de um sonho

Foto do escritor: João Mauro CursiJoão Mauro Cursi
Foto: Divulgação/ O2 Play

Apesar das opiniões divergentes que o filme suscitou na crítica desde a sua polêmica estreia no festival de Cannes deste ano, talvez seja consenso descrever Megalopolis como um filme ousado – afinal, não é todo dia que algum cineasta aclamado desembolsa centenas de milhões de dólares para filmar um sonho que a indústria rejeitou. Porque Megalopolis é isso, o sonho de Francis Ford Coppola, mas também uma realidade sonhada coletivamente pelo Ocidente. Talvez o maior mérito do filme seja o de traduzir em imagem esse imaginário coletivo, de forma que a relação entre espectador e filme seja tal qual a relação entre cidadão e civilização. Isso porque a realidade imaginada no filme não funciona como a representação de algo distinto de si, mas como uma abstração da própria civilização ocidental em forma de sonho.


Antes da cidade utópica, Megalopolis, há Nova Roma, a concretização do desejo delirante do homem ocidental. Então, para falar de Megalopolis é preciso, antes, comentar Nova Roma, o diagnóstico de uma sociedade contraditória fadada ao espetáculo. Nova Roma é uma Nova Iorque estruturada sobre o Império Romano. O Empire State compete por espaço com coliseus modernos, e a Estátua da Liberdade é mais do que nunca símbolo de ambiguidade: que liberdade é essa? Nova Roma é a representação visual de uma cidade que existe e não existe, ou então que existe em função de um ideal não concretizado. É Nova Iorque, mas também é Paris, Londres, Berlim, sem deixar de ser uma espécie de Gotham City dourada. É o futurismo da Metropolis de Fritz Lang que os nazistas aclamaram. É uma cidade que não existe, mas que é reconhecível como qualquer metrópole ocidental.


É sobre esse amontoado de referências que Coppola constrói Nova Roma, confusa e desconexa, assim como o mundo contemporâneo a partir do qual ela é imaginada. Nova Roma é a capital de um império dourado, cujo brilho mais cega do que encanta. Nesse sentido, o diretor constrói uma das melhores cenas da obra, que é o show da sua Taylor Swift fictícia, Vesta Sweetwater, interpretada por Grace Wonderwall. A cena consiste em um número musical da personagem nos moldes do padrão industrial de um show pop contemporâneo. Praticamente todo o elenco de personagens a está assistindo, e as reações são diversas: há encanto, há desprezo e, aos fundos, vemos centenas de luzes brilhantes, como lanternas de celulares em uma plateia. No sentido estrito do termo, é uma performance espetacular.


Ao fim, no entanto, as imagens da beleza fabricada da cantora pop, cuja fortuna é arrecadada com base na propaganda de sua virgindade, são substituídas por um vídeo íntimo falso da personagem com Cesar (Adam Driver), protagonista do filme. Essa subversão de expectativa não é acompanhada por uma anulação do espetáculo: na glória e na vergonha, a plateia não desvia o olhar. Ainda assim, o público do show é hipócrita, mas não porque se deleita em um espetáculo antiético falsificado, e sim pois a polêmica é causada principalmente por cair a fábula da cantora e ela ser revelada como é. Depois disso, a personagem já não tem mais importância para o público – nem para o filme –, assim como tudo aquilo que não se assume com confiança na própria representação de si mesmo.

Foto: Divulgação/ O2 Play

É a performance das atuações em função dessa auto-representação que parece gerar o maior estranhamento no espectador, na medida em que elas fogem de um padrão de sensibilidade atual. Não raro, na indústria cinematográfica, as atuações mais propriamente dramáticas seguem uma lógica de representação emocional oculta: um ator fala, no papel de um personagem, e, muitas vezes, o que ele diz tem menos impacto expressivo do que aquilo que ele quis dizer – isto é, o subtexto. Claro que diálogos excessivamente expositivos também são recorrentes na média dos filmes atuais, mas existe, como “padrão de qualidade”, sempre essa busca por uma resolução emocional mediada pela interpretação do espectador sobre o discurso dos personagens.


A direção de atores de Megalopolis se posiciona de modo contrário a essa prática: mesmo quando os personagens mentem para o público fictício a quem se direcionam os espetáculos diegéticos, há uma confissão diante da câmera, pois sabemos que eles têm consciência da própria mentira, como é o caso de Clodio Pulcher (Shia LaBeouf). Esse modo de atuação suprime em grande escala uma dimensão representativa da atuação (no sentido que o ator represente algo distinto de si) e passa a tratar o elenco como uma expressão mais direta daqueles arquétipos de personagens. Nesse sentido, os personagens são tratados como recortes diretos dessa perspectiva onírica da sociedade que o Coppola trabalha em unidade na direção. 


Além disso, o diretor notavelmente transpõe essa expressão quase ingênua da sua percepção social para a estética do filme como um todo. A montagem é, muitas vezes, abertamente artificial, e se vale de efeitos de colagem e sobreposição que causam estranhamento ao espectador contemporâneo acostumado com o naturalismo hollywoodiano. Essa abordagem é, em certo sentido, o oposto da forma como o elenco é dirigido: também na contrapartida da indústria, que frequentemente limita a dimensão visual do filme a um ambiente ilustrativo em que ocorre a ação, a dimensão visual de Megalopolis é tratada de maneira que possa gerar símbolos e expressões que não necessariamente dependem de uma coerência com o universo interno da obra. Mesmo assim, essa abordagem também exige uma sensibilidade mais ingênua do espectador — de modo curioso, pois, nesse sentido, exige a atribuição de sentido à imagem subsistente em si mesma; ou seja, depende de uma certa confiança do espectador em relação ao potencial expressivo da imagem, que é capaz de suplantar uma realidade naturalista pela realidade onírica do filme.

Foto: Divulgação/ O2 Play

É dessa maneira que Coppola reconecta o seu diagnóstico onírico da civilização contemporânea com o espectador. Na medida em que este também é capaz de sonhar, toda essa expressividade disjuntada de símbolos sociais, políticos, econômicos, etc. são sentidos não necessariamente sob uma interpretação racional, mas de maneira mais intuitiva dada a percepção de mundo comum entre o autor e o espectador. É justamente nessa medida que o mosaico de referências da obra é integrado e forma substancialmente um imaginário comum, que não é senão o fundamento da civilização ocidental — ou pelo menos do ideal que se tem dela. Nova Roma é abordada de forma que não seja uma representação distinta do objeto que representa, mas se iguale a ele. É justamente em contraponto a essa lógica que a segunda cidade surge: Megalopolis é absurda, essencialmente um lugar que não existe (uma u-topia). Enquanto Nova Roma é reconhecível nas capitais do mundo ocidental, Megalopolis parece alienígena; é a ruptura do sonho com a realidade na medida em que não há nada que exista como essa nova cidade.


Megalopolis é certamente um filme único, e nem sempre o diretor sustenta essa abordagem descrita como ousada sem soar piegas. Mesmo assim, a obra ainda é capaz de se sustentar em uma perspectiva crítica que vai além do seu contexto de produção e do discurso do Coppola para a mídia. Esteticamente, o filme também se opõe ao padrão industrial, não só ao recusar as convenções visuais e narrativas da indústria, mas principalmente ao virar de cabeça para baixo todo o esquema de representação da estética cinematográfica contemporânea. Megalopolis, a cidade, é um sonho dentro de outro que é mais baixo, pois se fundamenta no real. É o suspiro da arte em meio à arte que a indústria limita. É certamente o sonho do diretor; se é também o nosso, já não sei. Só sei que Nova Roma não nos parece estranha e que, posto que senti tudo que escrevi neste texto, acho que também somos capazes de sonhar um sonho delirante que a arte expressa. Visto que vivemos no mesmo mundo que Coppola vive, imaginamos, também, um mundo como aquele que ele imagina.


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