
Soube à distância do evento cataclísmico que foi Kickflip (2025), acompanhando impressões calorosas a partir de diários e rápidas leituras nas redes sociais. Bastante divisivo, o longa de Lucas Filippin certamente fez jus à proposta da 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes, cuja sentença norteadora — “que cinema é esse?” — ecoou a cada encontro projetado. Atribuída a Júlio Bressane, a frase é cúmplice à proposta curatorial da Mostra Aurora, segmento que particularmente torcia pelo conterrâneo Um minuto é uma eternidade para quem está sofrendo (2025, dir. Fábio Rogério & Wesley Pereira de Castro) — felizmente, o grande ganhador da referida mostra, reforçando que festivais são palcos do imprevisto e da confluência de sentimentos dos presentes, definidores da experiência cinematográfica baseada na interlocução entre público e obra.
Apesar do afastamento espacial e breve intervalo de tempo, o longa de Filippin encontrou caminhos para também confrontar minhas percepções sobre cinema. Em sessão organizada por amigos para acolher o retorno de Wesley Pereira de Castro, discutimos as impressões do festival mineiro e o que nos guardava, segundo o premiado, o “novíssimo cinema brasileiro”. Com o aval do próprio Filippin, o convidado aproveitou para demonstrar a materialidade do que o impressionou, fazendo questão de discutir o que parecia tão promissor e fortuito, especialmente entre aqueles que fazem e refletem cinema.
Começada a sessão, não demorou tanto para ser abduzido pelo universo proposto. Aparentemente ingênuo, o longa acompanha o cotidiano de um adolescente skatista enquanto seu melhor amigo grava vídeos para a internet, configuração baseada nas vivências juvenis e digitalizadas. Assemelhando-se a longas que utilizam aparelhos portáteis para demarcar paralelos com a realidade, a obra não se restringe a emular o esquema found footage, mas segue à risca o projeto sociotécnico baseado em recortes, quando a profusão de imagens substitui o contato imediato com o mundo. Em outras palavras, Filippin nos coloca na condição de observadores de ações que alternam temporalmente — umas mais curtas que outras, algumas menos monótonas que outras —, desempenho naturalizado pelas ferramentas de scroll que nos tomam o tempo. Contudo, apesar do raso esforço da crítica em subjugar a obra ao referido contexto, é inevitável que o longa possui afinidades mais cinematográficas. Refiro-me particularmente aos primeiros cinemas, sobretudo à produção de vistas que pareciam mais aleatórias e prosaicas, assim como ao eventual ordenamento destas, que pouco a pouco sucediam na produção de sentido. Não à toa, quando subiu ao palco para introduzir o longa, o estreante se limitou a dizer: “Kickflip… é uma manobra de skate.”; pertinente, para dizer o mínimo. Digo isso porque, à medida que as imagens passavam, optei por deixar de refletir sobre a pergunta norteadora e muito menos sobre o que havia lido sobre. São imagens que reorganizam o comum, recusando a produção de uma verdade a fim de ser uma verdade em imagem para o mundo. É, na busca de uma sentença de ordem, mero movimento criador, manobras que se concretizam a partir da interface “tentativa-erro-repetição”, sucedidas até buscar o que é, enfim, a obra.
Recordo de certa passagem do escritor Victor Burgin [1], especialmente ao refletir sobre o deslocamento e desmantelamento dos filmes, cuja experiência pouco a pouco se distancia do que antes era localizado e revisitado na integridade de uma sessão. Ao contrário, cada vez mais os filmes são definidos a partir de determinadas sequências, recortes que adquirem projeção transmidiática e penetram o inconsciente cultural. Afinal, não é preciso muito para reconhecer sequências e tampouco engatar conversas baseadas em filmes, as imagens já ocupam os espaços e integram as vivências, habitam a memória e possibilitam fabulações. Ao assistir o longa de Filippin, não pude deixar de pensar sobre tais asserções, sobretudo quando os instantes eram devidamente cadenciados, ritmados, justapostos. Ainda mais radical, Burgin esclarece que a experiência cinematográfica nesse contexto extravasa os limites outrora baseados no movimento proposital, buscando uma heterotopia imagética que respalda o entendimento de que o cinema pode muito mais ao ignorar a unicidade narrativa, produzindo, a partir do fragmento, uma experiência que se concretiza na memória. Isto é, assim como o longa se propõe a ser um processo, uma sucessão de manobras, a memória deste se instaura progressivamente como questionamento, retornando involuntariamente mesmo findada a sessão.

É um trabalho de sonhador, daqueles que viabilizam as imagens a partir das singularidades internas que agenciam, ordenando temporalidades como única saída para criação cinematográfica. Cristalizado, a obra rompe e retoma situações, produzindo um verdadeiro quebra-cabeça que despreza soluções em favor do que pode suscitar. Não à toa, o longa foi acolhido com mais facilidade entre os mais jovens, reconhecidos nas disrupções e atitudes dos personagens principais, representações flutuantes de uma geração que sofre pela ausência de objetivos concretos e se preocupam demasiadamente com a recepção imagética. Não há escapatória, tampouco seria o sentido da obra buscar uma saída, visto que não pode ser mais que um recorte no espaço-tempo. E a intencionalidade recai justamente nessa sinceridade, nesse aparente descuido sobre as imagens e o que registram, por vezes parecendo mera infantilidade dos envolvidos em tentar fazer cinema. Talvez seja esse o incômodo, o que as imagens revelam e sequer cessam de mostrar, recobrando as atenções em prol de um projeto aparentemente falido, mas incapaz de produzir apatia.
Curiosamente, assisti ao longa no aniversário de 79 anos de Bressane, fator que seria lembrado mais de uma vez por WPC durante o debate. Todavia, mais do que recorrer à sentença de Tiradentes, recordei de outra, também atribuída ao representante do cinema de invenção: “o cinema aparece quando o filme desaparece.”; uma asserção que corresponde aos desdobramentos e a única saída capaz para o cinema brasileiro. Os filmes não passam de sucessões de fatos e ações, replicantes de esquemas que abstraem mais do que provocam, é assim que a indústria cultural quis; o cinema, por outro lado, seria o sonho em curso, aquele lampejo que surge, imbuindo a experiência com inesperada vitalidade. No fim, não pude deixar de expressar contentamento e gratidão pela existência de Kickflip. Afinal, é realmente tudo o que dizem, para o bem ou mal. E, assim como o acolhido da sessão, estou na torcida por esse “novíssimo cinema brasileiro”, gesto necessário para aqueles que depositam esperança nos encontros que acontecem numa sala escura.
Referência Bibliográfica
[1] BURGIN, Peter. The remembered film. Londres: Reaktion books, 2004. p. 23
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