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"In Our Day": Um novo (antigo) passeio pelo ócio

Foto do escritor: Wandryu FiguerêdoWandryu Figuerêdo

Reconhecido internacionalmente, mas ainda em processo de descoberta no território latino-americano, Hong Sang-Soo destaca-se como um desses diretores que utilizam o cotidiano como matéria de captação para sua obra cinematográfica. Antes dele, diretores ocidentais como Éric Rohmer e Woody Allen já haviam explorado estruturas narrativas semelhantes. No entanto, com o passar do tempo, torna-se evidente a singularidade de Hong Sang-Soo em relação às suas possíveis influências, e como o cinema tem evoluído esteticamente, tanto nos festivais internacionais quanto no mercado comercial.


Em 2023, o autor lançou duas obras ao mundo, que talvez possam ser nomeadas de obras-primas, In Water (2023) e In Our Day (2023). Pelo menos no visual estético, ambas adotam posições distintas; In Water é uma experimentação que nasce do diálogo dos personagens e impregna na imagem, transformando todo o filme em uma névoa visível através do foco mecânico da fotografia, com ausência de nitidez. No caso de In Our Day, os planos até podem gerar outra dinâmica de interpretação, principalmente pela luz estourada em janelas em casas distantes, mas não desestrutura esteticamente a filmografia de Sang-soo.


Após o lançamento de In Water, onde o realizador explorou um novo tratamento de imagem através do foco, com as cores de sua composição se mesclando, como em uma pintura impressionista, surgiram rumores em torno de uma possível mudança na linguagem do diretor (tratamento parecido com o que aconteceu com Godard após um período), que antes se baseava em referências naturalistas-caseiras e na sensibilidade de enquadrar movimentos fotogênicos possíveis diante de uma câmera em hiato temporal. No entanto, apesar das diferenças, In Water compartilha com seu sucessor, e também sua filmografia, uma centralização do cotidiano, especialmente na execução dos gestos textuais e corporais, entre a criatividade de expressar sentimentos e a habilidade de navegar por ambientes onde aparentemente nada acontece além de conversas sobre passagens diárias insignificantes que participam de suas vivências. Simbologias implícitas de um cinema que se constrói por meio da banalidade.


Na nova narrativa, dois núcleos se destacam em casas que compartilham semelhanças: ambos abrigam personagens que demonstram domínio artístico, mas que também enfrentam crises íntimas. Em um ambiente, uma mulher abandonou seu ofício de atriz, de olhar para uma tela; no outro, um escritor e poeta deixou de lado um de seus hábitos diários, como o consumo de álcool, devido a um problema de saúde. Esses personagens centrais são confinados ao espaço doméstico, permitindo uma exploração mais profunda de suas vidas, sem perder de vista as complexidades emocionais que surgem das conversações com outros personagens e suas próprias curiosidades externas. Espontaneamente ou não, estamos adentrando em mais um espaço ocupado por Hong Sang-soo, um dos contemporâneos que reinventou uma das práticas ‘’agressivas’’, como o zoom, e como nada é por acaso, muito menos quando existem ações momentâneas na composição, ficamos atentos aos micro movimentos perante no plano. Nos dois núcleos, há momentos em que os personagens escapam da inércia encenada para momentos de desamparo ou jogos infantis, reposicionando a obra em outro material de análise crítica na encenação habitual do diretor.



Caso já tenham surgido rumores de que o diretor está preso a um estilo repetitivo de filmagem, o que, no entanto, não representa um problema frente ao vasto material histórico já existente, o autor habilmente movimenta sua gravura de registro para agregar simbolismo à sua narrativa. Constantemente, o cinismo na mise-en-scene desempenha correlações em torno da essência dos personagens, ao mesmo tempo que acompanhamos espontaneamente para buscar um reflexo íntimo que permanece presente em obras que buscam talvez nada, ou apenas um registro, não muito diferente dos universitários que pegam equipamentos para filmar ou dos primeiros registros filmográficos. Quem sabe, In Our Day, seja apenas sobre 03 pessoas conversando em uma tarde, que depois de muito tempo banalizando suas vidas descobrem contratempos que não foram mencionados pelos indivíduos, mas acompanhadas pela câmera.


Voltando ao início, nos primeiros minutos, a câmera acompanha suavemente o animal de estimação da atriz; após um período, quando o gato desaparece, a ex-atriz entra em prantos, expressando uma angústia profunda com um ‘’simples gato’’. Parece que o gato revela uma perspectiva única sobre a movimentação da película que não estará mais presente na vida da personagem. No livro, Num Piscar de Olhos, de Walter Murch, é mencionado que enquanto estamos observando nossas próprias vidas, estamos fazendo cinema. Inconscientemente, estamos reproduzindo nossa própria mise-en-scène, e, quando o gato escapa para fora do ambiente doméstico, a protagonista se percebe sem a presença de uma câmera em movimento. Depois de um período no chão, o gato retorna, e a antiga atriz retorna para sua ‘’performance’’ neutra de absorver os acontecimentos.


Em outro ambiente, o poeta conversa com sua filha adotiva, que está gravando um documentário, e um estudante interessado em aprender mais sobre o escritor. No entanto,  sua curiosidade é frequentemente interrompida para dar lugar a momentos de introspecção poética. O estudante pode não perceber, talvez por estar mais inclinado ao drama das palavras, mas o entrevistado está constantemente expressando um vazio interior causado pelo avançar da idade, pelos amores perdidos e pelos vícios que não podem mais ser desfrutados. Na sequência final, após uma atriz chorar no centro de um espaço temporal e geográfico diferente, eles começam a discutir sobre o sentimento que une essas três pessoas ao redor da mesa, mas também sobre o próprio filme: o amor.

 

Apesar das repetidas tentativas do estudante em sua fala, ele não consegue ir além de palavras simples, pois, no final das contas, o amor é sobre simplicidade. A mesa, um elemento recorrente na vida do diretor ao compor suas cenas, sempre se torna um espaço para as vozes se manifestarem no presente, enquanto flertam com memórias do passado e vislumbres do futuro. O plano, normalmente estático como as próprias movimentações na cena, cede lugar a um jogo de pedra, papel e tesoura. Nesse gesto simples, eles riem, bebem e compartilham banalidades que talvez não seriam expressas da mesma forma em outro momento. O personagem, que inicialmente não poderia consumir uma gota de álcool, se diverte com aqueles jovens, especialmente quando a documentarista liga seu objeto de trabalho. Talvez, o amor seja justamente isso: simplicidade e risco. Não posso afirmar com certeza, pois este é apenas um texto sobre In Our Day.

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