Tomados pelo desespero e agonia, um grupo de civis, composto em sua maioria por ex-soldados, arquitetam um plano a fim de neutralizar a ameaça Godzilla, que há pouco devastou o distrito de Ginza, em Tóquio. O encontro, no entanto, resulta em um estado de desânimo e descontentamento, visto que as agruras ocasionadas pela recém acabada Segunda Guerra Mundial ainda tornam a exasperar os envolvidos na empreitada. A consequência é expressa em números, com parte dos presentes incapazes de seguir com o plano, afirmando não desejarem vivenciar outra situação entre a vida e a morte. O restante, dispostos a cumprir com a missão motivados pela preservação do país e pela sobrevivência coletiva, escutam com atenção o projeto elaborado por um homem das ciências, cuja chances de sucesso são mínimas. Afinal, trata-se de combater o desconhecido, uma força da natureza que provou ser incontornável para a tecnologia desenvolvida pelos seres humanos até então. Nesse sentido, a referida situação expressa o embate entre humano e natureza, a categorização abstrata da vida e a transmutação constante do ambiente, provando que a proposta narrativa, além de trazer momentos de tirar o fôlego, carrega uma vitalidade subtextual capaz de nos fazer compreender as atitudes danosas que desempenhamos no planeta e nas relações interpessoais.
No livro Ideias para adiar o fim do mundo, o ativista socioambiental Ailton Krenak considera que a cultura moderna desloca os seres humanos do movimento natural da terra, gerando vivências de abstração civilizatória, suprimindo a diversidade e negando o caráter plural das formas de vida, de existência e dos hábitos. Idealizado há 70 anos, o primeiro Godzilla carrega essa perspectiva de desvirtualização entre humano e natureza, debate tão caro aos impactos sofridos pelas bombas de Hiroshima e Nagasaki, período marcado pelo trauma generalizado. Contudo, tal debate foi suprimido a cada sequência e derivados lançados, principalmente quando levamos em consideração os filmes originados a partir de Godzilla (2014) — primeira obra do monsterverse, uma tentativa falha de trazer os monstros para um cenário construído através de métodos espetacularizados. Indo pela via contrária, o novo Godzilla, curiosamente acompanhado pelo subtítulo Minus One, retoma o debate do original dirigido por Ishiro Honda e o fortifica, pontuando precisamente que, mais do que cenas de destruição em massa, acompanhamos jornadas humanas expostas a uma situação limite capaz de gerar união pelo bem comum.
Ademais, a narrativa é construída a partir de métodos próprios ao melodrama, onde dilemas morais são postos à prova. Alternando entre cenários internos e externos, a fita atenta-se à relação do personagem Kōichi Shikishima (Ryunosuke Kamiki) com a companheira de vida Noriko Ōishi (Minami Hamabe) e colegas de infantaria. Durante a Segunda Guerra, Shikishima foi alocado na divisão kamikaze, destinada a realizar ataques suicidas com aviões nos momentos finais da campanha do Pacífico, o que serve de mote no roteiro para lidar com questões relativas à honra. O fato de o personagem abandonar o posto, a ordem imposta pelo governo para defesa da nação, serve para debater o embate entre vontade individual e idealismo coletivo. Os primeiros diálogos também conversam nesse sentido, esboçando a temática fílmica: Tachibana (Munetaka Aoki), mecânico chefe de um posto da ilha Odo, suspeita da farsa do protagonista ao realizar um pouso forçado ocasionado por "falhas mecânicas", questionando suas atitudes frente às "necessidades" patrióticas impostas pela guerra; porém, logo depois é abordado por um dos mecânicos e este afirma estar do seu lado, afinal, por que lutar uma guerra quando já se sabe o resultado? Tal disposição acaba por evidenciar a dualidade narrativa, bem como o lugar ocupado por Shikishima frente aos outros: uma figura de extrema desonra e ao mesmo tempo com impulsos humanos válidos. Com isso em mente, a obra de Takashi Yamazaki goza de uma construção narrativa baseada em um caráter dualístico, pondo em prática questões históricas de forma tensionada, delineando cenários férteis para proliferação do discurso, seja no embate entre individual e coletivo, seja nas diferenças entre natural e humano.
De maneira análoga ao pensamento de Krenak, o filósofo francês Félix Guattari já ponderava sobre como a crescente verticalização entre as atividades sociais, mentais e ambientais, afeta os processos de construção subjetivos, alertando que o único modo de contornar este impasse é por meio de uma compreensão transversal interativa entre os ecossistemas, a mecanosfera e grupos de referência sociais e individuais. Ora, a organização social própria ao capitalismo, assim como em governos autoritários, interpõe certas necessidades frente a outras de caráter mais humano, prejudicando as relações aproximadas ao meio ambiente e às particularidades étnicas. De certa forma, a compreensão transversal proposta por Guattari ocorre como resposta das personagens humanas a Godzilla, visto que as posições sociais são revistas a cada momento, a cada discussão entre as partes. Do mesmo modo, a utilização do gênero como método gera um momento de interpelação entre espectador e autor fílmico, uma vez que Yamazaki se vale das convenções melodramáticas de maneira perspicaz, evidenciando algo novo baseado em algo familiar e respondendo a tendências sociais amplas. Em outras palavras, a narrativa não encontra-se apenas preocupada em evidenciar um cenário baseado no trauma, em uma perda imensurável para humanidade, mas também baseia uma crítica desgostosa ao movimento social, que se encontra mais do que nunca fragmentado, esboçando, sobretudo, um problema social de ordem moral.
Possivelmente o maior porta-voz da corrente de pensamento frankfurtiana e grande estudioso dos processos governamentais autoritários e capitalistas, Theodor W. Adorno reforça, em um apanhado de palestras ministrada em 1963, que "nada é mais degenerado do que o tipo de ética ou moral que sobrevive na forma de ideias coletivas mesmo depois que o Espírito do Mundo cessou de nelas residir". Embora separados por meio século, o pensamento de Adorno se aplica ao presente filme, uma vez que Yamazaki expõe através das ações esse tensionamento. Shikishima tem o trauma perpetuado dentro de si devido à construção moralista nacional japonesa, cobrando do personagem um posicionamento que revoga características basilares ao ser humano, como a sobrevivência, o medo e a dúvida. Semelhantemente, a guerra se baseia nesses preceitos morais, gerando um cenário de exploração dos recursos naturais com forte impacto no meio ambiente, o que mais tarde se prova a razão de desenvolvimento da ameaça Godzilla. Trata-se, enfim, de um esforço cinematográfico cíclico rara, pois do mesmo modo que os seres humanos geram a ameaça devido à exploração inconsequente dos recursos, esta, por sua vez, surge como elemento capaz de reavaliar a própria percepção, evidenciando o que é verdadeiramente importante para vida.
Referências Bibliográficas
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. 9. ed. Campinas: Papirus, 1999.
BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. A arte do cinema: uma introdução. Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: Editora da USP, 2013.
ADORNO, Theodor W. Problems of moral philosophy. Cambridge: Polity Press, 2000.
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