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“Família” e o Japão miscigenado

Foto do escritor: Roger PortelaRoger Portela

Koji Yakusho em "Família" (Foto: Sato Company)

“Gaijin” é uma palavra japonesa cujo significado seria algo como “estrangeiro”. É um conceito muito utilizado para se referir a imigrantes, quase sempre como um insulto. Entretanto, no mundo globalizado de hoje, ele quase não faz mais sentido. A globalização carrega seus problemas, e as relações de diferentes culturas, mesmo miscigenadas, ainda carregam consigo lastros, cicatrizes do passado. Mesmo acostumados, hoje, com essa mistura de povos, o choque cultural persiste, e ainda pode gerar violência.


Família, dirigido por Izuru Narushima, conta a história de Seiji, vivido por Koji Yakusho (que recentemente protagonizou Perfect Days [2023] de Wim Wenders, mas muito conhecido também pelos seus trabalhos com Kiyoshi Kurosawa), um velho ceramista viúvo que recebe a visita de seu filho, que vive na Algéria, trabalhando numa usina de gás. A visita é para que seu pai conheça Nadia, sua esposa algeriana, que perdeu os pais na guerra. Seu filho demonstra interesse em largar o trabalho para viver no Japão e tornar-se ceramista como o pai, que não aceita; o filho tem um bom trabalho e quer constituir família, uma família que sua esposa não pôde ter, ao passo que o trabalho de ceramista não dá dinheiro. E enquanto esse impasse acontece, Marcos, nipo-brasileiro, se envolve numa briga de gangues e é ajudado por Seiji a se esconder. A partir disso, a vida de Seiji se entrelaça com a de Marcos, meio delinquente, perseguido por ser um gaijin, um rapaz sem objetivos e perspectiva de um futuro.


A partir de então, o filme trabalha com esses núcleos de forma bem compassada, vagarosamente, tendo o personagem de Yakusho como a cola que mantém o filme unido e coeso: se de um lado há o dilema do filho e sua relação com a esposa de passado trágico, descobrindo finalmente o que é a felicidade na vida, temos do outro a história de Marcos e da comunidade brasileira no Japão, vivendo em um conjunto habitacional empobrecido e, apesar das dificuldades envolvendo dinheiro, as gangues japonesas e a Yakuza, ainda conseguem tempo para sonhar, desejar e amar. Seiji, aqui, acaba se tornando, através dos seus silêncios e da maneira calma e tranquila que guia sua vida, uma espécie de portador de sabedoria e solucionador de problemas.

Cena de "Família (Foto: Sato Company)

Essa trama segue com um melodrama algumas vezes exagerado se não em tom, mas nos acontecimentos por vezes absurdos e sempre intensos. Dessa forma, o filme utiliza-se do drama e dos dilemas internos de seus personagens para trazer dilemas e questões externas de um Japão contemporâneo. Um Japão pós-crise financeira de 2008, um Japão aprendendo a lidar com imigrantes em sua terra, seja para aceitá-los e abraçá-los como iguais, seja mediante alienações e violência étnica. Em determinado momento do filme, Marcos grita dizendo que não sabe se é japonês ou brasileiro e, sendo os dois, não é ninguém. Nessa dualidade, nesse dilema do filho de duas pátrias tão distantes, o mundo do filme, imenso, apequena-se. A globalização miscigenou povos, aproximando-os pelo sangue e pelos sentimentos, mas as relações culturais e sociais tendem a ser bem mais complexas. O melodrama, gênero histórico japonês, de mestres como Ozu e Mizoguchi, miscigena-se com o exagero tradicional do estilo no Brasil.


Tomando seu tempo, o filme guia-se pelas relações complexas em tela através dos planos quase sempre estáticos, mas que se movem quando brasileiros estão em foco. E então, junto do seu ritmo contido, suas imagens gritam estrondosamente em seus momentos mais emocionais. Há uma cena fortíssima, nos últimos trinta minutos, protagonizada por Yakusho, onde o tom emocional eleva-se a um ponto capaz de arrancar lágrimas.


“Família” é um melodrama contemporâneo que revisita os dilemas internos típicos do gênero para expor os problemas e dilemas de um Japão em mudança. Algumas vezes cambaleia em tamanho exagero e quase cai, mas, no geral, mantém-se em pé, na altura dos olhos, unicamente para arrancar todas as lágrimas possíveis.


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