
É sempre uma tarefa complexa tentar refletir em cima do cinema contemporâneo, pois sua velocidade faz com que qualquer ponto levantado se torne obsoleto em pouco tempo – é como estar sempre adiantado e atrasado em igual quantidade. Ainda assim, o registro de uma produção em seu determinado tempo histórico é um exercício oportuno, afinal levantar questionamentos sobre o que é reproduzido dentro da cinematografia exige um olhar que – e para este pensamento tomo como base Giorgio Agamben – permite-se colocar o presente em relação com os outros tempos. É indubitável que a indústria cinematográfica ao redor do mundo passou por um processo de modificação quando as pautas identitárias demandaram daqueles em posição de poder não apenas a revisão do que estava sendo disseminado, mas também a inclusão de minorias nessa tomada de decisão.
A produção hollywoodiana, claro, também passou pelo mesmo processo ou, pelo menos, criou a ilusão de que essa movimentação estava acontecendo de fato. Com alguns anos de processo, o que fica evidente são um conjunto de escolhas que demonstram cada vez menos a atenção ao cinema: seus serviços de streaming concentram produtos que não passam de trinta anos; suas imagens estão cada vez mais plásticas e pautadas em um realismo cinzento; e suas narrativas aparentemente progressistas servem apenas como sorrisos em um acordo de cavalheiros, buscando nas premiações de sua própria indústria a validação de seus discursos. O que se torna comum, então, é a reprodução estereotipada de algum tema destacável a partir de e sobre o olhar do outro. Ou seja, quem produz e quem valida são pessoas que partem do olhar colonizador e eurocêntrico.

O que se pode constatar é que, nos últimos dez anos, a aparência de importância – seja visualmente, seja no discurso – é mais válida que o real desejo por refletir uma subjetividade. Em outros termos, se a indústria valida sua produção como “importante” e “necessária”, ela o faz por mero interesse econômico, sem reais preocupações socioculturais - o que não é algo surpreendente, por sua vez. Em outros termos, se ela não consegue dominar o discurso em voga, ela se apropria até esvaziar. Chegou-se a um estado em que uma das palavras mais repetidas na última década, “representatividade”, está apenas condicionada a um fenômeno meramente estético. O que se encontra, na maioria das vezes, é a tentativa de blindar o filme de determinada crítica em cima de sua suposta representação das minorias. Emilia Pérez, de Jacques Audiard, parece ser o ponto culminante desse progressismo mascarado de uma experimentação cinematográfica. Partindo de Rita (Zoe Saldaña), uma advogada frustrada, acompanhamos a história do chefe do tráfico mexicano, Manitas, que além de abandonar sua vida, deseja afirmar sua verdadeira identidade: Emilia Pérez (Karla Sofia Gascón).
É evidente, desde o princípio da metragem, que Audiard pretende construir seu filme mesclando o espetáculo musical - e a primeira palavra, por sua vez, não se restringe ao componente do gênero fílmico - e um drama com tintas de Alejandro González Iñárritu, de um suposto realismo social. Com relação à primeira característica, o filme transforma a transição de gênero em uma exibição que transforma esses corpos em mero objeto trocável e não uma questão de identidade e subjetividade. Além disso, as músicas compostas por Clément Ducol e Camille, quando não são de extremo mau-gosto, servem mais como ratificadoras dos sentimentos ou acenos a bandeiras identitárias, sinalizando a insuficiência da imagem para contar tal trama. Já em relação à segunda, fica mais evidente a semelhança entre Audiard e Iñárritu: estamos falando de cineastas cuja imagem da violência serve como propulsor de uma possível exibição técnica, apropriando-se de uma estética de sofrimento que, no mínimo, é insípida. A violência é utilizada como um meio de parecer que o filme possui um olhar mais incisivo sobre a sociedade, mas, na prática, não vai além do superficial.


Quando o diretor caminha para o relacional entre os personagens, tentando flertar com os melodramas mexicanos (ou aqueles realizados por Pedro Almodóvar), o que se observa é a falta de domínio da linguagem dramática, acreditando que sentimentalismo é o mesmo que melodrama – quando são abordagens completamente distintas. Então, o que resta cinematograficamente é um amontado de esquetes artificiais – para não dizer vaidosas – que tentam amalgamar violência, identidade, preconceitos sem, de fato, conseguir argumentar o que quer que seja em seu discurso ou em sua cinematografia. E sua inexpressividade ganha uma camada de autoimportância por unir a suposta representatividade – cujo corpo violentado parece dar conta, sem levar em consideração como essa representação reproduz uma imagética preconceituosa – com uma ideia de experimentação que é mais uma desorganização estética que a vontade de se colocar a prova em termos audiovisuais.
Audiard, acreditando que uma personagem como Emilia Pérez pode ser um instrumento para sua trama de redenção, prefere concentrar-se em transformar o ambiente ao seu redor em um cenário extravagante, considerando-se louvável como cineasta por tocar em temas de tamanha complexidade, sem levar em conta que todas as escolhas que, além de datadas, revelam uma mentalidade eurocêntrica e colonizadora. A protagonista se torna, como em seu desfecho, uma imagem a ser carregada como mera justificativa para a ânsia de demonstrar como o cinema contemporâneo parece totalmente adaptado às demandas que vêm sendo cobradas de maneira uníssona. O aceite por parte da indústria revela esse desejo por uma autoaprovação, como se tudo devesse ser superado em nome de uma unanimidade discursiva.

O produto, contudo, revela muito mais que a falta de tato na representação identitária: constata-se a completa incapacidade de articulação da linguagem audiovisual por parte do diretor. Buscando dar conta de tantos estímulos – um musical, um true crime pasteurizado produzido pela Netflix, um dramalhão de baixa voltagem – Emilia Pérez é autofagia da própria indústria, discursando para si mesma sobre o que ela acredita que é a forma correta de lidar com as demandas. A grande questão, então, do contemporâneo cinematográfico, por parte de algumas de suas figuras, é a apropriação neoliberal dos problemas sociais e políticos, uma retroalimentação da superficialidade e da superficialização da cultura. É temível observar que tal discurso transforma a arte cinematográfica em instrumento de conformismo, vastamente disseminado, onde o que é considerado “necessário” é apenas o que mantém a máquina funcionando, sem questionar suas premissas.
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