top of page

Devaneio Poético (ou os paralelos das imagens de Hong Sang-soo)


Foto: Divulgação/ Pandora Filmes
Foto: Divulgação/ Pandora Filmes

Filósofo, mas também poeta e químico, Gaston Bachelard concebeu o devaneio poético como um estado de observação onde objetos e espaços cotidianos revelam camadas de significado. Essa perspectiva não apenas ilumina as famosas obras de Yasujirō Ozu em filmes como Pai e Filha (1949) e Era Uma Vez em Tóquio (1953), mas encontra ressonância em duas produções orientais contemporâneas que dialogam de forma peculiar: o anime Sōsō no Frieren (2023-) e o filme As Aventuras de uma Francesa na Coreia (2023), de Hong Sang-soo.


Apesar de pertencerem a estilos narrativos bem diferentes — um é uma aventura épica e o outro traz um realismo mais sutil —, as duas obras têm em comum uma forma poética de olhar para o cotidiano. Frieren nos leva a seguir uma elfa imortal em sua jornada pós-épica, onde ela busca dar um novo significado ao presente. Já As Aventuras de uma Francesa na Coreia retrata os pequenos desvios da vida de uma professora, mostrando gestos simples como caminhar descalça, deitar sobre pedras e dar aulas. Em ambas as histórias, o dia a dia se torna um convite à reflexão sobre o tempo presente. 


As ressonâncias dessas obras já se fazem notar nas primeiras sequências. Em As Aventuras de uma Francesa na Coreia, Hong Sang-soo nos coloca à mesa com Iris (Isabelle Huppert) e Yi-song (Kim Seung-yun) por meio de uma câmera que espelha nosso olhar, tornando-nos cúmplices involuntários de um diálogo aparentemente trivial, onde  se acumula densidade narrativa. Por outro lado, Frieren traz uma reviravolta na jornada épica: a derrota do antagonista Rei Demônio acontece nos intervalos da história, mudando o foco para o que vem depois. A elfa, ao despertar para a afetividade humana, passa a entender a grandeza do amor não correspondido de Himmel. Nesse tempo estendido entre os eventos, onde outras narrativas costumam apresentar seu ponto climático, ambas as obras cultivam uma poética da duração, transformando objetos imóveis e cenários ao ar livre em meditações sobre a passagem do tempo.


Os objetos materiais compõem-se por meio de uma ritualização orquestrada. Em Hong Sang-soo, as mesas recorrentes, quase sempre carregadas de garrafas de soju esverdeado e pequenos pratos de acompanhamentos, transcendem sua função cênica. Convertem-se em zonas de performance dentro da performance, verdadeiros espaços dramáticos onde a luz artificial incide sobre a madeira em holofotes como em um teatro. Nestas superfícies que refletem tanto bebidas quanto conflitos, os personagens não apenas dialogam, mas encenam suas existências através do ato compartilhado de beber, comer e, sobretudo, esperar.  


Foto: Reprodução
Foto: Reprodução

Em Frieren, a verdadeira jornada não se mede em batalhas épicas, mas no tecido sutil das pequenas ações que compõem seu universo expansivo. Embora cenas de combate existam, e sejam visualmente estimulantes, o olhar da direção de Keiichirō Saitō persegue outra grandeza: os momentos de transição onde se revela a poesia do cotidiano. Seja na maneira como Frieren observa, com quietude, a maturação de Fern e Stark; seja na paciência com que alonga gestos simples, como se cada um contivesse séculos de significado. Estas escolhas narrativas não apenas humanizam a imortalidade da protagonista, mas criam um espelho para nosso próprio tempo perante a tela. 


Em outra época, em outro sistema fílmico, na cena derradeira de Pai e Filha de Ozu - onde o protagonista descasca uma fruta com movimentos circulares que parecem materializar o ritmo da melancolia, transformando cada rotação da faca numa fase temporal de luto silencioso - o cinema de Hong Sang-soo opera através dessa metamorfose do micro. Se em Ozu a tristeza se revela no intervalo entre um corte e outro da lâmina, em Hong cada movimento (o girar de um copo entre os dedos, a posição do corpo diante da câmera) converte-se em nova lente para observar o mundo. 


Eis o devaneio poético em sua essência: inicia como exercício de imaginação, quase uma "escuta das imagens mudas" que Bachelard propunha, e se consuma quando percebemos que esses gestos mínimos contêm, na verdade, toda uma gramática semântica no invisível. O pai do filme de Ozu não está apenas descascando uma fruta; está revelando como o comum pode ser um mapa para o numinoso na imagem. Hong não filma só pessoas bebendo, mas expõe como cada gole é uma arqueologia das relações. E nós, espectadores, quando aprendemos a ver com esses olhos ‘’parados’’, descobrimos que o mundo está repleto de cerimônias não nomeadas, cerimônias belas no ambiente comum, mesmo que em alguns mundos existam dragões. 


Comentários


bottom of page