
I
“Onde nada acontece”
“Será que já disse aqui que o sonho de Zavattini é fazer um filme contínuo com noventa minutos da vida de um homem a quem nada aconteceria?”, indaga André Bazin em um dos seus textos mais celebrados sobre o filme Umberto D., clássico do neorrealismo italiano de Vittorio De Sica. Neste filme, durante aproximadamente cinco minutos, acompanhamos a empregada do apartamento acordando, arrumando-se, caminhando até a cozinha e passando um café. São atitudes banais, que estão mais voltadas ao que Deleuze chamaria de imagem-tempo que à imagem-movimento, aquela que impulsiona a narrativa para frente, desencadeando novos acontecimentos. O desejo pelo banal, pelo “nada acontecendo” já estava presente no início da década de 1950, mas um outro detalhe chama atenção nesse desejo de Zavattini, roteirista do filme: tudo isso aconteceria em noventa minutos, ou seja, em uma temporalidade palatável ao público e, consequentemente, à indústria.
Se, aqui, ainda assim haveria uma cadência narrativa, em Jeanne Dielman (1975), dirigido por Chantal Akerman e que completa cinquenta anos esse ano, não é o drama ou a ação que impulsionam o filme, mas o prolongamento do tempo, a repetição dos gestos, que nos arrastam para uma experiência temporal que, na falta de outro termo, podemos considerar palpável. Por mais de três horas acompanhamos a rotina dessa dona de casa, vivida por Delphine Seyrig, durante três dias: preparando as refeições, limpando a casa, atendendo clientes de forma sexual, cuidando do filho. Essas tarefas, repetidas meticulosamente, criam um ritmo hipnótico e quase mecanizado que vai se tornando mais desconcertante a cada novo momento.
Aqui, a cineasta observa cada uma das ações do início ao fim, evitando o uso de elipses ao máximo. O espectador é posto dentro do ambiente antes de a personagem entrar e, mesmo que ela saia de quadro, não há qualquer garantia de que outra ação irá acontecer – exceto caso as luzes se apaguem. Se o que Zavattini pretendia com o projeto era uma observação quase voyeurística das ações dos personagens, Akerman abandona essa concepção e a substitui por uma abordagem mais direta. A câmera da cineasta – posicionada à altura dos olhos, indicando uma estabilidade visual –, muitas vezes, permanece na mesma posição, sem artifícios que criem uma ilusão de deslocamento. Não estamos, assim, observando a cena através de um buraco de fechadura, como Jean Cocteau tão bem descreveu o ato de assistir a um filme narrativo.



Em vez disso, estamos diante de Jeanne, em uma posição frontal sem distâncias artificiais. Não há contraplano que nos forneça uma visão alternativa ou que nos mostre um personagem observando Jeanne – tudo é, constantemente, filtrado pela rigidez da posição da câmera, uma rigidez que se reflete também na rotina da própria Jeanne. Cada gesto, cada movimento seu, por mais trivial que seja, é observado com a mesma intensidade e atenção. O que Akerman nos oferece, então, é uma visão minuciosa e quase clínica dessa mulher, de suas repetições, de suas pequenas ações cotidianas. O olhar da câmera é, ao mesmo tempo, curioso e imperturbável. O que se passa na mente de Jeanne permanece um mistério insondável. Não há pistas claras ou truques narrativos que nos permitam entender seus pensamentos ou sentimentos de forma explícita. A subjetividade de Jeanne é, em grande parte, inacessível; qualquer tentativa de interpretação depende, inevitavelmente, da projeção do espectador. E, para Akerman, tal noção não se faz importante. Ela está concentrada nas pequenas interações, nos silêncios e nas pausas que, ao longo do tempo, revelam as fissuras na aparente estabilidade de Jeanne.
II
“As imagens da fissura”
“Essa era a única maneira de fazer esse filme – evitar cortar
a mulher em cem pedaços, evitar cortar a ação em cem partes,
olhar cuidadosamente e ser respeitosa. O enquadramento foi
planejado para respeitar o espaço dela, ela e seus gestos no interior do quadro.”
(AKERMAN apud MARGULIES, 2016, p. 142).
Muito além de pensarmos como essa opção indica um olhar feminista sobre o corpo da mulher diante da câmera, o que se pode observar é a atenção com cada enquadramento e, consequentemente, os gestos realizados por Jeanne dentro de cada imagem. Após a passagem do primeiro dia, o segundo é tomado por ações das quais podemos prever o final. Uma delas é o ato de colocar e retirar dinheiro da enorme porcelana posicionada no centro da mesa de jantar. O espectador, imerso nesse espaço, pode reconhecer elementos como a cristaleira, a passagem da protagonista atrás da janela de vidro e o posicionamento preciso de objetos ao redor da cena. Tudo está meticulosamente posicionado, como se o próprio espaço fosse parte de um sistema equilibrado. A dinâmica entre os elementos visuais cria a sensação de uma harmonia que, paradoxalmente, também parece estar à beira de um certo descompasso.
O olhar de Akerman provoca em quem assiste uma relação de dualidade muito específica: existe uma busca pela atenção às mínimas mudanças, as pequenas inflexões – ainda que Jeanne pouco fale durante o filme – e, ao mesmo tempo, tal atitude por parte do espectador o coloca num processo de alienação que o hipnotiza. Então, se antes o filme poderia ser descrito como palpável, por falta de uma palavra mais precisa, agora existe um termo que melhor traduz essa sensação: sinestésico. A experiência cinematográfica vai além da simples observação; todos os sentidos de quem está do outro lado da tela são, de alguma forma, ativados. Cada elemento parece mais vívido, mais presente, mais concreto. Tudo ganha uma dimensão grandiosa, como se o próprio filme transcendesse o plano da ficção para se tornar uma realidade ampliada, imersiva e – olha a palavra novamente! – tangível.


Quando, então, o sistema é quebrado, a própria montagem e a concepção da imagem se tornam outra. Em uma noite, após esquecer de comprar batatas, Jeanne vai até a porcelana da sala de jantar, coloca o dinheiro, mas não fecha a tampa – um movimento que já assistimos realizá-la algumas vezes. Com as luzes apagadas, o espectador sabe que ela não retornará ali, abrindo espaço para um desconforto – ou uma angústia, se melhor couber ao leitor – que só será sanado quando aquele objeto voltar a ser da mesma forma que nos acostumamos a ver. Mas Akerman opta por quebrar a rotina dentro da própria formação da imagem: quando Jeanne volta à cozinha, a câmera está posicionada em um espaço diferente do que durante aproximadamente noventa minutos foi vislumbrado. Essa é a imagem da fissura, da ruptura. O mundo equilibrado, harmônico e meticulosamente calculado dentro da rotina quebrou-se, e as coisas não serão mais as mesmas dali em diante.
Com a instabilidade posta, a próxima hora da metragem passa a acompanhar um sistema entrando em colapso, uma rotina sendo deslocada. Portões fechados, botões abertos, café com gosto ruim: a imprevisibilidade não só toma conta do cotidiano, mas também transforma a própria natureza do que parecia previsível. A cozinha, antes o núcleo ordenado no qual a repetição se tornava alienante, agora se revela como uma arena onde a incerteza se infiltra, como um relógio que, ao invés de marcar o tempo, começa a devorá-lo. O equilíbrio se perde e, a partir desse momento, a vida se torna como uma folha de papel que, após ser amassada, revela seus vincos, suas falhas e a irreversibilidade do movimento – não há mais como retornar ao estado anterior. Akerman abre a porcelana e não a fecha, transformando Jeanne Dielman em uma obra perene, cujos ecos permanecem inesgotáveis até os dias de hoje.
Referência Bibliográfica
MARGULIES, Ivone. Nada Acontece: O cotidiano hiper-realista de Chantal Akerman. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2016.
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